terça-feira, 26 de junho de 2007

Luanda-maracujá

(Sorrisos leves em dias de quentura e desleixo. É assim. Vida mulata, ou não, pessoas vivem. ‘Mas vivem sempre’, dizem os pragmáticos, ‘enquanto estamos vivos, estamos sempre a viver e esse nem é um bom mote para uma história boa, seja ela qual for’. Os pragmáticos, segundo o brasileiro e escritor e cronista-quase-génio Nelson Rodrigues, procuram a objectividade, aquele conceito que é tudo e não é nada, insensível, porque a objectividade é isso mesmo: um objectivo (a não ser cumprido, de preferência). Tal como todas as histórias. Tal como o Mundo. Tal como a vida – todas as vidas são boas histórias, mesmo as de maracujás, mesmo que sejam tudo e nada, sem futuro e sem peripécias e sem objectivos, quase como um fruto pendurado na árvore uma vida inteira, até cair esborrachado ao lado das formigas e dos lagartos.)

Girar e arrancar do galho

Dona Jamélia, 33 anos feitos ontem, era a cara chapada do filho, ou vice-versa, o pequeno Zinho, de 5 anos. Passavam a vida no alcatrão-cimentado que no Verão parece plasticina. Vendiam maracujás. Amarelos, grenás, de cor mais bordeux, não interessa. Eram coloridos, pronto. Tinham muitas cores, que, curiosamente, não acompanhavam o dia-a-dia e o estado de espírito daquele casal, mãe e filho, tranquilos e empoeirados, refastelados e pobres.

‘O pai?’ franzia Jamélia as sobrancelhas quando lhe perguntavam por Artur-pai. O filho era Zinho, de Arturzinho, nome de registo. ‘Hum, desconfirmou, e coiso, vazou’, atirava logo de seguida, sem engolir nem um pouco de oxigénio, e sem um bocadinho assim que fosse de saudade, acompanhando a frase com um leve movimento manual, indicativo.

Eram só os dois. (Aliás, seriam três. Os maracujás fazem parte da vida desta mãe e deste filho.) Não se pense que vendiam maracujás para não vender banana ou abacaxi ou batata-rena, isto não lhes era indiferente. Jamélia é uma moça inteligente, sensível, bonita, ui, para lá de bonita – mas ‘deseducada’. Mal saberia ler. Contas, eram uma desgraça. Enganava-se, repetia-se, perdia-se. Tinha crescido sem escola, só na escola dos homens e das amigas e das tragédias todas de um país e de um continente sem fôlego.

Precisava respirar um ar mais puro e justo. É assim com todas as pessoas e com todos os maracujás, até: para sermos justos, precisamos conhecer a justiça; para sermos limpos necessitamos saber o que é a limpeza, o asseio; para apanhar o fruto da árvore, é preciso saber o que é deitar a mão, arrancar qualquer coisa de um qualquer sítio. Esta não é uma conversa moralista, nem profunda, sequer. Podemos todos ser inteligentes sem ser educados e sem saber comer com faca e garfo, sem beber vinho nos copos de cristal em forma de balão-de-chiclet.

Jamélia era assim – cuspia no chão, não tinha meias palavras (quando ofendia era de fodido para cima), terminava quase todas as frases em ‘coiso’, palitava os dentes, não bebia vinho (só Cuca, e pela garrafa), não tinha o cubico a brilhar, até porque seria impossível. A terra vermelha é sempre baça e aquele quadrado rodeado de chapa e cartão-mais-pó não tinha remédio. Ela também não se importava.

Pronto, era deseducada mas inteligente. (Era era. Ela olhava os maracujás, observava-os com atenção, horas a fio, dias inteiros, dias em que quase não os vendia, inebriada e pensativa.)

A sabedoria de Jamélia seria metafórica, exactamente assim, metafórica e sem maquilhagem – de tão pura, tornava-se uma quase santa. Uma mulher de metáforas, que as debitava num estado semi-inconsciente, semi-educada, semi-maracujá. ‘O meu palácio di lama’, era como se referia, grossa e sempre jocosa, à sua ‘vivenda’ no bairro do Golf, subúrbio da Luanda dos nossos dias. Uma cidade à procura de o ser, à procura de mais uma chance, de uma oportunidade para ser maior e mais bonita e justa e tudo isso que as cidades boas são. Esta, que nos serve de pano de fundo, cresceu cresceu e cresceu mas nunca passou do complexo de Édipo – foi elaborada na barriga de uma Lisboa que também já não existe, e nunca saiu daquela caixa de ar, segura da guerra, dos tiros e da luta fratricida.

(‘Amor de mãe’ – dá para tatuar este cliché, com âncora e tudo, num dos braços da cidade.)

Enfim, a Luanda, Jamélia deu o apelido de ‘Cidade dá justiça’. Porque era aqui que tinha feito justiça e arrematado um belo pontapé-no-traseiro do pai do Zinho. O seus pensamentos não eram rebuscados, e era mesmo por isso que seriam interessantes. As amigas-colegas destravavam-se em gargalhadas, rebolavam e riam. ‘Dá justiça! Xé, justiça quê? Justiça dessa nem na novela das 20, moça. Esses cabritos só roubam o povo, é só sofrer sofrer, sofrer bué. Que vida fodida, sem kumbú, sem energia, sem água, sem escola, ah Jámélia não brinca mais assim’.

(Pois é, levavam os dizeres de Jamélia a sério, não os transpondo para a vida de cada uma delas - descontextualizadas como eram, assemelhavam-se a um editor de jornal sem editar notícias. Passava tudo em seco, incoerente e inconsciente. Sim, ela brincava mas entregava-lhes a sabedoria, todos-os-dias-menos-Domingo, naquela esquina do Largo da 'Oliva' com as arcadas dos Registos Centrais.)

Tirar a faca do bolso, abrir o maracujá

Tinha uns olhos castanhos, cor de bombom. Condizia bem com a sua pele, leite com carradas de café. Mas Jamélia era uma espécie de feiticeira, mãe de todas as verdades. Quando vendia maracujás, o pregão era mais ou menos assim:

- Moça, pssst moça! Não queres levar a nossa cidade? Leva só… 500!, 500 Kwanza!

Trabalhava enquanto esticava aqueles cabelos difíceis mas de beleza singular. Jamélia também não fazia por menos. Enquanto os maracujás amadureciam ao sol quase fulminante, ela ia tratando da sua imagem. Chegava a ficar com meia cabeça em trancinhas, perfeitinhas e bonitinhas, e outra meia de cabelo electrificado, espigadão e mal-encarado. Isto de manhã, porque por volta das 12, não, 13 horas, esticava o pano verde, (vermelho, rabiscado, azul-forte e azul-claro), das crianças e jibóiava só.

(Aquele pregão não era normal.) ‘Ai é?’, pensavam os transeuntes quando ouviam a dona. Alguns. Outros esbugalhavam os olhos, surpresos. Mas a realidade é esta: quem se iria empertigar com uma oferta daquelas? Quem comprava maracujás nem se questionava, nem discutia com a kitandeira. (A não ser o preço.) Pagavam e pronto.

Jamélia também não era, sejamos coerentes e verdadeiros, uma pessoa extrovertida. Os diálogos com os clientes, por exemplo, roçavam o monocórdico:

- Bom dia mãe. Dá-me 500 de maracujá, ya?
- Hum Hum. Zinho, vem praqui, não faiz isso. (O ruído de fundo, bip bip, vruuuuum, bip bip, ‘ó senhor!’, e os escapes abertos quais assassinos de pistola-com-silenciador também não eram propícios a grandes debates.)
- Zinhou! Já te falei e coiso, não faiz isso porra!
- Dona, porquê dizes se não queremos ‘levar a nossa cidade’?
- Ah, é maneira de falar uê?

As conversas seguiam sempre o mesmo caminho. (Muitos consideravam Jamélia um ser perdido, sem rumo e desfigurado – as pessoas passam a ser ‘loucas’, logo, automaticamente. Basta o contexto ser desfavorável e a mensagem pouco credível.)

Comer o maracujá

- Zinhou!, toma o coiso, vais comer já!

Jamélia estende a mão e despeja na boca de Zinho mais um maracujá.

- Filho, bebe um pouco da nossa cidade. Está a ver, tem semente, muita semente. Tem vida. Tem cor, mas alguns estão apodrecer, velhos, desmotivados. Num parece uma coiso, hum, uma cidade qualquer?

(Zinho bebia, só. Não atendia ao processo de libertação metafórica em que a mãe se encontrava, sozinha na rua, sozinha num mundo achatado, de cabeças achatadas e corações achatados.)

À volta daquele casal, mãe e filho, todos se comportam como citadinos, como frutos de uma árvore que já deu muitos rebentos, que depois se transformaram em galhos e que deram folhas e flores e frutos. E foram comidos e outros caíram de podre, no chão sujo da poeira vermelha, branca, cinzenta-escura e outra vez vermelha, mas baça ainda e sempre, quase descolorida. Outros foram trespassados por mosquitos e melgas e moscas e abelhas, que ferram tudo o que for doce e comestível, belo mas enjoativo, quase um misto de pato-à-pequim com mufete e vinagrete e mandioca e tudo o resto, acre doce tropical e doce, outra vez e a dobrar.

É isso,

Luanda é quase um barco à deriva, enjoado, saltitante e desencorajador, bonito como a dureza de um mar azul que se perde de vista. Nojento, porco e malcriado e mal-amanhado, mas caramelado, com moças carameladas, com um sol caramelado (e, por vezes, acre e forte mas saboroso) e pessoas carameladas e arrrrgh, às vezes áspero e sensaborão e bonacheirão, sem pinta e sem estilo.

Jamélia é, ela própria, a metáfora que guia o candongueiro da vida. A metáfora que pode ser transposta para um maracujá qualquer – uma mulher de trabalho, com filhos, com problemas e desequilíbrios. Um fruto por amadurecer, que depois de maduro não dá em nada. Falta-lhe uma boca boa para trincar, uma vida para amar – circular, endémico, doentio e palpável. Os maracujás, pendurados no galho como se estivessem debruçados no parapeito das varandas-quase-corredores, típicos de uma época de arquitecturas arriscadas e de injustiças para lá de arriscadas, nascem, desenvolvem-se, reproduzem-se e morrem.

(Jamélia, ao olhar anos a fio para aquelas bolas que parecem rostos – marcadas com buracos de acne e covas de expressão, marcas da vida e das sementes que fizeram crescer outras sementes e outros rostos – via elementos que só ela descortinava. Só uma mulher poderia engendrar uma cidade tal qual um fruto, uma vida. Instintivamente, Jamélia sabia que havia uma ressalva: ao contrário das vidas de nós todos, as cidades, esta cidade, esta Luanda-maracujá, não pode morrer, nunca.)

Sem comentários: