domingo, 3 de junho de 2007

A planta que dá sonhos

Contava ter 300 anos desde a sua plantação por N'gola Kiluanje. Serena, móvel somente pela folhagem e estática pelo tronco encravado com raízes cuja profundeza só a terra pode dizer. Folhas verdes, completamente verdes, a ostentar uma vida difícil de acreditar, a julgar pelos séculos que carrega.
As folhas caídas, secas com o passar do tempo foram inúmeras, levadas pelas águas das chuvas, ou pelo vento, sem que se reduza a sua vaidade exuberante de planta.
Ela foi deixada pelo rei que a desejava como sombra, enquanto estivesse a descançar quando chegasse à Luanda proveniente de Pungo-A-N'dongo. Plantada com as folhas para baixo, segundo contam idosos, a mulemba é testemunha de escaramuças de homens desentendidos em política.
Querendo ela ser alimentada e acarinhada como no tempo do rei que sabia bem cuidar dela, sem rodeios, forçou um sonho. Juntou as forças de vontade vegetal-humana-espiritual para atingir a mente telepática de alguma pessoa que pudesse retomar o dever de N'gola.
Ela fez tudo, sem sair do sítio. conseguiu. Uma comunicação milagrosa e incrível. Dona Etelvina, mais-velha que goza de prestígio social pelo agasalho aos hóspedes e partilhar dos problemas sociais, foi ela mesma. Sonha. Uma árvore qualquer, frondosa, folhas acastanhadas e amareladas, em tempo seco, falava para ela em voz humana, na língua que fala, sem erros de semántica, nem de fonética.
- Traga-me comida! Traga-me comida, Estefánia! Posso morrer se hesitares. Não tenho mãos, não tenho boca. Por favor, vê onde estou! É próximo de tí.
Mas, na realidade, ela não dava sinais de ser uma faminta. Parecia-se com
uma árvore cheia de vigor, nutrida e amada, pois toda a gente apreciava-a. Ninguém passava por ela sem lançar as vistas à sua folhagem.
Fazia exigências justas do ponto de vista humano. Mais atenção, adoração e carinho, pelo facto de ser algo simbólico herdado de um ancestral, cujo nome, N'gola originou o de um grande território chamado Angola.
Dona Etelvina desperta, calcorreou mentalmente sobre tão grande sonho. era estranho! "Uma árvore pedir alimento, onde é que já se viu?".
Acordada e sem vontade de voltar a dormir, pestanejou, baixou a cabeça para accionar a imaginação em direcção à planta. Ir ver a única árvore que havia nas imediações, neste caso a tal mulemba do rei.
Não havia outra semelhante na cercania. Era a única.Dona Etelvina sabia da história. Foi-lhe contada por distintas pessoas, várias vezes, em muitas ocasiões e era do seu domínio total. Daí, resultou-lhe uma ideia:
- O rei deixava migalhas de comida nesta mulemba!
-Ahan!
-Só tinha de ser.
-Então...tem razão. O rei há muito que já morreu. Tem razão esta mulemba!
Dona Etelvina esperou os raios de sol raiarem e começou a preparar a iguaria: batatas fritas com bife, pão, maionese, gasosa, cerveja, açúcar, manteiga e água conservada em sanga.
Não se via ninguém ainda a transitar aquela hora. O vento causado pelo cacimbo soprava amistosamenete. Etelvina encosta-se à mulemba, poisa o cesto e não conseguia divisar as folhas lá para cima da árvore. Até mesmo os pequenos ramos roçavam-se pela cabeça.
A entrega foi antecedida de um anúncio:
-Oh, nossa mulemba, tu que não me vês, só eu que te vejo, eis a sua refeição. Não tenho grandes posses para o seu sustento com este corpo todo que tens. Perdoe as minhas limitações e a impossibilidade de cá voltar. Aproveite o máximo que puder e viva com saúde!
Um ramo que pendia sobre a cabeça assusta-lhe levemente com uma carícia inesperada. Parecia a mão peluda de N'gola que passara sobre a sua cabeça, em gesto de agradecimento.
O pano à cintura cedeu para baixo, apanhou-o, amarrou-o do mesmo jeito e com mais eficácia. Deu meia volta, não olhou atrás. Marcou passos lentos de
regresso à casa com o sentido do dever cumprido.
Etelvina pensava nas baratas, formigas, ou cobras capazes de invadir a oferta da Mulemba, muda e surda. Não receava intenção de homem algum que fosse invadir e aproveitar-se daquele recheio. Não haveria quem ousasse retirar algo daí. Não haviam gatunos.
No dia seguinte, Etelvina acordou disposta a visitar a sua amiga árvore para constatar o sucedido. De tanta ansiedade, a mais-velha esqueceu-se que tinha de se lavar, nem se recordou da higiene bocal.
Dirigiu-se ao recinto da Mulemba com a atenção virada às coisas deixadas. Lá estava ela, parecia mais alegre. Dona Estefánia bateu palmas de contentamento e espanto.
-Eh, eh, eh (issunge) milagre!
Toda a comida, bebida inclusivamente fora tudo consumido. Garrafas vazias, latas espalhadas, com algumas partículas de comida era um cenário aí visível. Curiosa ainda de averiguar o que via, contornou o tronco.
Em pé, por bastante tempo, Estefánia cabeceava de tal maneira que entendeu sentar-se. Adormeceu por cima das folhas. Em poucos instantes sonhou:
- Mais-velha, a tua geração foi abençoada. De hoje em diante terá grandes sucessos. Fique descançada, a paz abundará em sua família.
Uma formiga que andava pela testa despertou-lhe do ligeiro sono. Ergueu-se e foi-se embora para casa. Recordou-se que deveria dizer:
-Mulemba, nossa mulemba, minha mulemba, N'gola morreu, eu estou cansada, vivo sob cuidado dos filhos. "Não sei se ouviu!", pensou Estefánia.
Ela comunicou a vizinhança para a tomada de conhecimento.
-Afinal a Mulemba passava fome, fui eu que lhe dei de comer. Até pediu-me em sonho, vejam lá! dizia a senhora. Por pouco teríamos desgraças com este pau. Um pau que fala mana. Está mesmo a vir no sono. É milagre (issunje).
A informação corrreu rapidamente por toda a comunidade. Algumas pessoas começaram a arrancar ramos para plantar nos seus quintais devido as promessas a velha Estefánia, sem se esquecer de levar comida, em dias de festa à Mulemba.
Dona Estefánia faleceu meses depois tendo o seu acto repetido por várias gerações da sua época como ritual popular.

Francisco Luciano Fernandes

Sem comentários: