LUANDA, CIDADE DE TODOS OS POSSÍVEIS

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Reportagem


Em Luanda há homens inseguros que fazem de 'seguranças'

A noite corria num ritmo forte de grande calmaria. É mesmo assim. Um ritmo forte de grande calmaria. Repito para não deixar dúvidas. Não pode haver dúvidas numa cidade como Luanda, e os seguranças são a cara das poucas dúvidas. Como se duvida da integridade moral e civilizacional das pessoas, nomeadamente das mais pobres, toca a contratar seguranças. Adiante. Alguém chega apressado e de telemóvel na orelha. Falava com outra pessoa que está naquele prédio colonial, bonito (mas colonial), lá para a banda do Maculusso. Traz qualquer coisa na mão e precisa de subir a um dos apartamentos, mas a porta do edifício, por segurança, está fechada à chave.

‘Muanza!’. Primeira vez. ‘Mu-an-zaaa!’. Segunda vez. ‘MUANZA!!!’. Terceira vez. Nada se passou. O tal homem, alto e desengonçado, queixo proeminente, bigode e cabelo risco-ao-lado, tinha procurado e berrado pelo guarda. E nada. O receptor da encomenda, que entretanto tinha descido para a apanhar, denunciou Muanza através da porta-de-ferro-fechada-à-chave, informação logo seguida de um movimento elegante do braço, apontando a direcção justa, junto a dois carros que sempre estacionam naquele lugar. ‘Os guardas devem estar a dormir, encostados naquele carro, mesmo à frente dos caixotes de lixo da Elisal, aqueles ali, cor-de-laranja europeia’. O homem desengonçado avança, e apetece adivinhar o que passava pela cabeça dele, naquele preciso momento em que está a pisar o alcatrão já bem fresco.

Ele olha, de soslaio, para o tal sítio junto ao carro. Sorri para dentro – os guardas estão mesmo ali. São três. Dá dois passos atrás. Vai fazer mesmo o que lhe está a apetecer. ‘PUM!’. A descompostura patronal recebida às 21 horas de uma jornada que terá começado pelas 8 da manhã, e as duas horas que gastou para resolver uma emergência, também ela patronal, deixaram-no assim. Descompensado. Desarranjado. Ele tinha acabado de arrear um pontapé “à Eusébio”, perna direita na bola que se vai enroscar na rede quadrada, esburacadamente quadrada. ‘PUM!’. Eram três caixotes do lixo, que chocaram como três peças de um dominó, aquele jogo apreciado pelos guardas, seguranças e taberneiros. Parecia combinado. ‘PUM! PUM! PUM!’.

No segundo seguinte uma reacção em cadeia revelou a incongruência do acto. Uma cidade segura por seguranças seguros não tem alarmes de três carros a tocar ao mesmo tempo, nem pessoas a correrem para a janela, nem caixotes do lixo pontapeados. Nem luzes a acenderem, de forma sincronizada, em toda a vizinhança. Nem pessoas que dormiam, no posto de trabalho, às 23 horas.

Um dos seguranças saiu disparado do ninho, no sentido contrário ao estrondo dos caixotes. Raspou-se, portanto. Outro, o Jorge, estava agachado por detrás do carro-abrigo, só se via a cabeça, ressuscitada de um sonho bonito que certamente estaria bem longe do Maculusso, da insegurança e de um trabalho mal pago. Muanza deslocava-se para ‘a posição’, como ele gosta de dizer. Camisa aberta, esgrouviado, atordoado por um pontapé Eusebiano, qual guardião depois de apanhar com uma bomba do moçambicano cara adentro. Parecia que ele é que tinha sido atingido, não os caixotes cor-de-laranja europeia.

O homem alto e desengonçado gesticula e promete vingança. Não foi possível ouvir a conversa, mas é fácil imaginá-la. Aliás, Muanza costuma repetir ‘nós não dormimos, estamos bem alerta a noite toda’. Está tudo dito - e agora vamos interromper a conversa. Chegou o jantar e Muanza sai disparado, ‘porque o carro que traz a comida, todos os dias à mesma hora, não vai passar mais’. É justo.

Muanza, figura de cinema

Durante os anos 80 e princípios de 90, em plena guerra MPLA – UNITA, ele andava no mercado Roque Santeiro a comprar imbambas para vender nas Lundas’. ‘Ia no Roque, comprava jeans, ténis, roupa, tudo o que as pessoas precisam, empacotava. Tinha um amigo numa agência de viagem que me levava no Antonov, no russo, o Antonov sabe?, para as províncias, e ia lá vender tudo. Passava vários dias fora, a família ficava em Luanda, fiz algum dinheiro’. Tanto que deu para construir uma ‘casa grande grande’, onde actualmente alberga os oito filhos - ‘eram nove’ -, e a mulher. A mais-velha, moça na casa dos vinte anos, ‘já recebeu a carta do pedido, por isso está para casar’. Esta frase Muanza, agora com 49 anos, diz com orgulho, olho brilhante. ‘Os outro sete estão todos comigo, estudam’, acrescenta.

Tem andado doente e por isso perdeu muitos quilos nos últimos dois meses. Em caso de necessidade, não terá arcaboiço para lutar com qualquer ladrão, mesmo que ele seja o brasileiro-brega-anão, aquele, “comé?”, o Nelson Ned. É, nem o Nelson Ned perdia um braço de ferro com o tio Muanza dos dias de hoje. ‘Estou com febre tifóide e paludismo. Mas já me estou a tratar. No final do tratamento vou estar normal. São 94 comprimidos’, explica, com os óculos de haste dourada empoleirados e enviesados, à direita, na sobrancelha, à esquerda, na menina-do-olho, excitado e confiante, agora que a patroa lhe tinha dado dinheiro para a consulta.

Muanza e Jorge são guardas do mesmo prédio, mas de pessoas diferentes. O dia-a-dia deles submete-se a uma rotina quase non-sense. De manhã, cada um deve dizer uns cinquenta e cinco ‘bom dia, sim’. É o trabalho deles, dizer ‘ok, bom dia, sim’. (Pelo meio ouve-se um rádio, jibóia-se e trocam-se ideias). De tarde, o calor aperta e o exercício é deveras estimulante – encontrar a melhor sombra ‘para descansar depois do funje’, como diz Muanza. Passam do passeio oposto à entrada do prédio, para depois se sentarem debaixo da pala da entrada do prédio, para finalizarem o dia nas arcadas junto da galeria comercial. Chega a noite e aqui é fácil – pitar e dormir.

Então e os ladrões? ‘Estou aqui como segurança há 5 anos e só por uma vez houve maka com bandido’, começa por dizer Jorge, o mais experiente de todos. ‘Fui o primeiro guarda daqui’, repete de forma profundamente concisa e, até certo ponto, orgulhosa, olho bem aberto na cara redonda e marcada pelo tempo, pelas peripécias de uma vida pouco fácil. ‘Naquele dia havia umas motas grandes dentro do prédio, os bandidos quiseram entrar’. Desconseguiram. Jorge chamou a polícia e depois de muita discussão eles desapareceram.

Como quase todos os guardas da cidade (digamos melhor, ‘como quase todos os homens da cidade’) Muanza e Jorge têm um passado ligado à guerra e à vida militar. ‘Ah, eu estive no mato mesmo, com as FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), sei ver bem longe um bandido – se tem arma ou se vem com intenção de roubar, eu já estou a vê-lo’, afirma Jorge. Muanza é mais tranquilo e da guerra só fala dos ‘6 anos passados no Lubango, a lutar contra os sul-africanos. Eles só atacavam com aviação, sabia disso? As bomba saiam do cú do avião cá para baixo!, os cubanos tinham radares e binóculos, foram a nossa salvação’.

Muanza, alegoria anti-bandido

Jorge vive na Estalagem, pouco antes de Viana, subúrbio desenfreado de Luanda. Lá é que estão os bandidos. ‘Ah, tem muito bandido mesmo, ainda ontem bateram na minha porta – querem levar tudo, aparelho, rádio, antena, dinheiro. Ainda há os seguranças que parecem bandidos, a própria polícia também é bandida e nas áreas difíceis nunca aparece, não gira e não vê nada, nunca’.

Manuel, 33 anos, é guarda de uma pastelaria que não tem cadeiras, nem mesas, nem bolos, nem Cuca, sequer. Ainda não abriu, mas já tem segurança. É no Alvalade, uma das zonas nobres de Luanda. Em frente à pastelaria tem uma casa, de um qualquer general que possui uma gazela fechada no quintal. Se calhar foi o mesmo que o ameaçou quando estava de serviço num condomínio privado, perto da Samba.

- Sai da frente senão vou-te bater e levar na unidade. Abre o portão!
- Senhor, todas as pessoas que queiram entrar têm de se identificar. De seguida eu vou perguntar à pessoa a quem se dirige, para saber se o conhece, se está à sua espera. Só depois pode subir.
- O quê?! Você não sabe quem eu sou?
- Não meu senhor, não sei.

Manuel foi obrigado a telefonar para o administrador do prédio, e foi ele que resolveu o problema. ‘Quando o general bazou, me deu uma olhada! Xé!’. Tem dois filhos e mora para a banda do Morro Bento, zona sul da cidade. ‘Ah, lá é Centro de Bandidagem mesmo, celular?, eh!, é bom para bandido’. Na ‘posição’ em que se encontra, lá no Alvalade, o dia passa-o como todos os outros seguranças da cidade. ‘Ok, bom dia, sim’. ‘Ya, boa tarde, sim’. ‘Obrigado, obrigado’. Sentado numa cadeira de plástico branco, daquelas bem agradáveis numa esplanada virada para o mar.

No Maculusso a luz passou de baça e amarelada, quase chinesa, para a ausência total. Está escuro. O trânsito desapareceu, as pessoas também, apenas alguns jovens escorregam Luanda fora, noite fora, Cucas fora. Por volta das zero horas os dois únicos carros que circulavam nas imediações da Liga Africana beijaram-se. Boca com boca, violentos, quase loucamente apaixonados. Apaixonados demais – deu bronca, deu estoiro e travões a fazerem de reco-reco e chapa com chapa. Vermelha contra cinzenta.

- Não diz porra, tá a ouvir? Ele tem a culpa, e da próxima vez que este jovem disser porra eu vou-lhe dar!, berra um dos condutores na direcção de um daqueles mirones que logo surgem debaixo das pedras, quais lagartos à espera da presa ideal.

Os intervenientes e os ‘lagartos’ discutiram, gritaram, a energia da rede foi e voltou, apareceu a polícia. Bazaram, voltaram todos e voltaram a bazar. Fizeram barulho, ameaçaram-se. Muanza nem se mexeu. Continua enroscado nele mesmo, posição fetal, junto dos carros estacionados em frente aos caixotes cor-de-laranja europeia, provavelmente a sonhar com o dia do casamento da filha mais-velha.

terça-feira, 26 de junho de 2007

A caçadora de história

O silêncio pairava no cemitério, envolto em casas cobertas de chapa. Pássaros levantavam voo, assustados com os passos de Mirian, uma mulher sedenta de saber um pouco mais da histórica morte de Nito. Ouvindo pessoas, testemunhas, no cemitério, onde transitava ou noutro sítio. Ao longe, viam-se alguns indivíduos. Vinham de algum funeral, enquanto outros circulavam como Mirian, não para caçar, mas para diversão.
As campas jaziam inertes, sem som, sem calor, sem frio, viesse o que viesse, nem que fosse a chuva. Um odor tentava escapar-se. Era um incómodo. Um retrato de madre estava estampado numa lápide para a lembrança de entes queridos, padres, madres, familiares ou amigos.
Mirian caminhava entre as sepulturas, ávida. Queria chegar até onde ficava o túmulo de Nito, líder da intentona golpista, fracassada em 27 de Maio de 1977, para contar a quem quisesse saber e para o seu recheio intelectual.
Manuel Salvador, o coveiro, deu conta de Mirian, como sendo alguém que procurava algo entre as sepulturas. Achava estranho. Aproximou-se lentamente lançando algumas palavras:
-Estou a tomar conta destas campas. O que queria minha senhora?
-Onde é que fica o túmulo de um tal ... Nito? -inquiriu.
-Nito? -Nito Alves? Estas informações não podem ser dadas assim, só assim. Isto é política. Nós na política não nos metemos. É extremamente perigoso - dizia o coveiro, enquanto caminhava de braços atrás, fazendo Mirian segui-lo com os seus passos, para o canto direito do cemitério.
Algumas covas desenhavam-se, devido à terra acalcada pelas águas da chuva e pelo vento, que soprava e arrastava parte dos montes. Um grande túmulo revestido de mosaico, com pequenos pilares à volta, aí estava. Vários nomes escritos na parede faziam uma longa lista. Podia ver-se o de Nito Alves, no meio de outros, como Urbano de Castro e David Zé.
-Aqui enterraram quase mil corpos. Não dá para imaginar, os corpos descobertos, eram deitados ácidos para secarem, só que o cheiro foi demais e o povo revoltou-se, pediu para enterrá-los. O meu comandante também foi aqui, acusado de fraccionista - revelou Manuel Salvador.
-Enterraram aqui os dirigentes, não entrou povo qualquer neste buraco, estes foram enterrados naquele lado - mostrou o coveiro à Mirian, com a cabeça, ao invés do dedo indicador.
-Ninguém ousava comer carne, quem visse aquilo - lembrou o homem.
Mirian manteve-se calada, imaginando a matança de que ouvia falar.
-Costuma vir alguém prestar alguma homenagem? - perguntou Mirian.
-Não, não vejo ninguém. Só de vez em quando, mas aqueles ligados à Asociação 27 de Maio - replicou Manuel Salvador.
Mirian pensava na distância entre Luanda e Lisboa, para onde viajaria no dia seguinte. Queria estar mais apetrechada e satisfeita com elementos suficientes para contar aquela história, espectacular, vivida por muitos.
Ao sair do cemitério, Mirian ficara com a sensação de ter deixado um recinto com várias histórias por relatar. A questão era optar por uma interessante. A de Nito tinha este carácter.
Ficaram os pássaros, ficaram as campas e ficara velho Manuel Salvador contente por ter cumprido um dever delicado, raro e fácil só se for sob efeito do álcool, como se demonstrava ao rejeitar-se a falar daquele político.
Não queria perder nem mais um minuto, Mirian seguiu em direcção ao bairro, no subúrbio, onde se aventava ser o local de encontros secretos que resultaram naquela trajédia, no Sambizanga.
Um jovem prontificou-se:
-Olha, aqui neste edifício foi o sítio de reunões. Reuniam-se aí. Quem teve sorte escapou-se e hoje são chefes no governo.
-Blindados vieram aqui no bairro, pisaram as casas dos fraccionistas. Foi horrível.
-Como é que sabes isto? - ineterrogou Mirian, afagando os ombros do moço.
Tenho muitos recortes de jornais, ouvi palestras, escutei entrevistas de rádio, ouvi testemunhas - confirmou ele.
Tristeza já passara, havia sim uma alegria em ouvir o desenrolar de uma história como aquela, da intentona fracassada, ouvida só de pessoas idosas, que a vivenciaram.
-Tens algum dossier? Vais escrever esta história em livro? - inquiriu o jovem.
-Não, agora não, só mais tarde. Mas se isto acontecer, será em forma de ficção.
-É mentira dela! É mentira! Esta é contra-revolucionária. Vai vender estas dicas ao imperialismo. O imperialismo estrangeiro.
Mirian não conseguiu gerir o clima criado. Em poucos segundos estava cercada de gente que queria ver quem era a contra-revolucionária.
-Deixem! Deixem-na! Sois atrasadinhos, vocês nada sabem. Ela está a estudar esta história de Nito. Não tem mal nenhum. Quer saber o que se passou naquele tempo.
Lá ficou o moço com o barulho. Mirian arrancou o jeep, sem mais se despedir, nem reparar para atrás. Era o fim do dia e o princípio de uma noite, às vezes perigosa, com a existência de muitos bandidos que fazem mal. Mirian desapareceu do cenário, sem mais pensar em voltar.


Francisco Luciano Fernandes

Luanda-maracujá

(Sorrisos leves em dias de quentura e desleixo. É assim. Vida mulata, ou não, pessoas vivem. ‘Mas vivem sempre’, dizem os pragmáticos, ‘enquanto estamos vivos, estamos sempre a viver e esse nem é um bom mote para uma história boa, seja ela qual for’. Os pragmáticos, segundo o brasileiro e escritor e cronista-quase-génio Nelson Rodrigues, procuram a objectividade, aquele conceito que é tudo e não é nada, insensível, porque a objectividade é isso mesmo: um objectivo (a não ser cumprido, de preferência). Tal como todas as histórias. Tal como o Mundo. Tal como a vida – todas as vidas são boas histórias, mesmo as de maracujás, mesmo que sejam tudo e nada, sem futuro e sem peripécias e sem objectivos, quase como um fruto pendurado na árvore uma vida inteira, até cair esborrachado ao lado das formigas e dos lagartos.)

Girar e arrancar do galho

Dona Jamélia, 33 anos feitos ontem, era a cara chapada do filho, ou vice-versa, o pequeno Zinho, de 5 anos. Passavam a vida no alcatrão-cimentado que no Verão parece plasticina. Vendiam maracujás. Amarelos, grenás, de cor mais bordeux, não interessa. Eram coloridos, pronto. Tinham muitas cores, que, curiosamente, não acompanhavam o dia-a-dia e o estado de espírito daquele casal, mãe e filho, tranquilos e empoeirados, refastelados e pobres.

‘O pai?’ franzia Jamélia as sobrancelhas quando lhe perguntavam por Artur-pai. O filho era Zinho, de Arturzinho, nome de registo. ‘Hum, desconfirmou, e coiso, vazou’, atirava logo de seguida, sem engolir nem um pouco de oxigénio, e sem um bocadinho assim que fosse de saudade, acompanhando a frase com um leve movimento manual, indicativo.

Eram só os dois. (Aliás, seriam três. Os maracujás fazem parte da vida desta mãe e deste filho.) Não se pense que vendiam maracujás para não vender banana ou abacaxi ou batata-rena, isto não lhes era indiferente. Jamélia é uma moça inteligente, sensível, bonita, ui, para lá de bonita – mas ‘deseducada’. Mal saberia ler. Contas, eram uma desgraça. Enganava-se, repetia-se, perdia-se. Tinha crescido sem escola, só na escola dos homens e das amigas e das tragédias todas de um país e de um continente sem fôlego.

Precisava respirar um ar mais puro e justo. É assim com todas as pessoas e com todos os maracujás, até: para sermos justos, precisamos conhecer a justiça; para sermos limpos necessitamos saber o que é a limpeza, o asseio; para apanhar o fruto da árvore, é preciso saber o que é deitar a mão, arrancar qualquer coisa de um qualquer sítio. Esta não é uma conversa moralista, nem profunda, sequer. Podemos todos ser inteligentes sem ser educados e sem saber comer com faca e garfo, sem beber vinho nos copos de cristal em forma de balão-de-chiclet.

Jamélia era assim – cuspia no chão, não tinha meias palavras (quando ofendia era de fodido para cima), terminava quase todas as frases em ‘coiso’, palitava os dentes, não bebia vinho (só Cuca, e pela garrafa), não tinha o cubico a brilhar, até porque seria impossível. A terra vermelha é sempre baça e aquele quadrado rodeado de chapa e cartão-mais-pó não tinha remédio. Ela também não se importava.

Pronto, era deseducada mas inteligente. (Era era. Ela olhava os maracujás, observava-os com atenção, horas a fio, dias inteiros, dias em que quase não os vendia, inebriada e pensativa.)

A sabedoria de Jamélia seria metafórica, exactamente assim, metafórica e sem maquilhagem – de tão pura, tornava-se uma quase santa. Uma mulher de metáforas, que as debitava num estado semi-inconsciente, semi-educada, semi-maracujá. ‘O meu palácio di lama’, era como se referia, grossa e sempre jocosa, à sua ‘vivenda’ no bairro do Golf, subúrbio da Luanda dos nossos dias. Uma cidade à procura de o ser, à procura de mais uma chance, de uma oportunidade para ser maior e mais bonita e justa e tudo isso que as cidades boas são. Esta, que nos serve de pano de fundo, cresceu cresceu e cresceu mas nunca passou do complexo de Édipo – foi elaborada na barriga de uma Lisboa que também já não existe, e nunca saiu daquela caixa de ar, segura da guerra, dos tiros e da luta fratricida.

(‘Amor de mãe’ – dá para tatuar este cliché, com âncora e tudo, num dos braços da cidade.)

Enfim, a Luanda, Jamélia deu o apelido de ‘Cidade dá justiça’. Porque era aqui que tinha feito justiça e arrematado um belo pontapé-no-traseiro do pai do Zinho. O seus pensamentos não eram rebuscados, e era mesmo por isso que seriam interessantes. As amigas-colegas destravavam-se em gargalhadas, rebolavam e riam. ‘Dá justiça! Xé, justiça quê? Justiça dessa nem na novela das 20, moça. Esses cabritos só roubam o povo, é só sofrer sofrer, sofrer bué. Que vida fodida, sem kumbú, sem energia, sem água, sem escola, ah Jámélia não brinca mais assim’.

(Pois é, levavam os dizeres de Jamélia a sério, não os transpondo para a vida de cada uma delas - descontextualizadas como eram, assemelhavam-se a um editor de jornal sem editar notícias. Passava tudo em seco, incoerente e inconsciente. Sim, ela brincava mas entregava-lhes a sabedoria, todos-os-dias-menos-Domingo, naquela esquina do Largo da 'Oliva' com as arcadas dos Registos Centrais.)

Tirar a faca do bolso, abrir o maracujá

Tinha uns olhos castanhos, cor de bombom. Condizia bem com a sua pele, leite com carradas de café. Mas Jamélia era uma espécie de feiticeira, mãe de todas as verdades. Quando vendia maracujás, o pregão era mais ou menos assim:

- Moça, pssst moça! Não queres levar a nossa cidade? Leva só… 500!, 500 Kwanza!

Trabalhava enquanto esticava aqueles cabelos difíceis mas de beleza singular. Jamélia também não fazia por menos. Enquanto os maracujás amadureciam ao sol quase fulminante, ela ia tratando da sua imagem. Chegava a ficar com meia cabeça em trancinhas, perfeitinhas e bonitinhas, e outra meia de cabelo electrificado, espigadão e mal-encarado. Isto de manhã, porque por volta das 12, não, 13 horas, esticava o pano verde, (vermelho, rabiscado, azul-forte e azul-claro), das crianças e jibóiava só.

(Aquele pregão não era normal.) ‘Ai é?’, pensavam os transeuntes quando ouviam a dona. Alguns. Outros esbugalhavam os olhos, surpresos. Mas a realidade é esta: quem se iria empertigar com uma oferta daquelas? Quem comprava maracujás nem se questionava, nem discutia com a kitandeira. (A não ser o preço.) Pagavam e pronto.

Jamélia também não era, sejamos coerentes e verdadeiros, uma pessoa extrovertida. Os diálogos com os clientes, por exemplo, roçavam o monocórdico:

- Bom dia mãe. Dá-me 500 de maracujá, ya?
- Hum Hum. Zinho, vem praqui, não faiz isso. (O ruído de fundo, bip bip, vruuuuum, bip bip, ‘ó senhor!’, e os escapes abertos quais assassinos de pistola-com-silenciador também não eram propícios a grandes debates.)
- Zinhou! Já te falei e coiso, não faiz isso porra!
- Dona, porquê dizes se não queremos ‘levar a nossa cidade’?
- Ah, é maneira de falar uê?

As conversas seguiam sempre o mesmo caminho. (Muitos consideravam Jamélia um ser perdido, sem rumo e desfigurado – as pessoas passam a ser ‘loucas’, logo, automaticamente. Basta o contexto ser desfavorável e a mensagem pouco credível.)

Comer o maracujá

- Zinhou!, toma o coiso, vais comer já!

Jamélia estende a mão e despeja na boca de Zinho mais um maracujá.

- Filho, bebe um pouco da nossa cidade. Está a ver, tem semente, muita semente. Tem vida. Tem cor, mas alguns estão apodrecer, velhos, desmotivados. Num parece uma coiso, hum, uma cidade qualquer?

(Zinho bebia, só. Não atendia ao processo de libertação metafórica em que a mãe se encontrava, sozinha na rua, sozinha num mundo achatado, de cabeças achatadas e corações achatados.)

À volta daquele casal, mãe e filho, todos se comportam como citadinos, como frutos de uma árvore que já deu muitos rebentos, que depois se transformaram em galhos e que deram folhas e flores e frutos. E foram comidos e outros caíram de podre, no chão sujo da poeira vermelha, branca, cinzenta-escura e outra vez vermelha, mas baça ainda e sempre, quase descolorida. Outros foram trespassados por mosquitos e melgas e moscas e abelhas, que ferram tudo o que for doce e comestível, belo mas enjoativo, quase um misto de pato-à-pequim com mufete e vinagrete e mandioca e tudo o resto, acre doce tropical e doce, outra vez e a dobrar.

É isso,

Luanda é quase um barco à deriva, enjoado, saltitante e desencorajador, bonito como a dureza de um mar azul que se perde de vista. Nojento, porco e malcriado e mal-amanhado, mas caramelado, com moças carameladas, com um sol caramelado (e, por vezes, acre e forte mas saboroso) e pessoas carameladas e arrrrgh, às vezes áspero e sensaborão e bonacheirão, sem pinta e sem estilo.

Jamélia é, ela própria, a metáfora que guia o candongueiro da vida. A metáfora que pode ser transposta para um maracujá qualquer – uma mulher de trabalho, com filhos, com problemas e desequilíbrios. Um fruto por amadurecer, que depois de maduro não dá em nada. Falta-lhe uma boca boa para trincar, uma vida para amar – circular, endémico, doentio e palpável. Os maracujás, pendurados no galho como se estivessem debruçados no parapeito das varandas-quase-corredores, típicos de uma época de arquitecturas arriscadas e de injustiças para lá de arriscadas, nascem, desenvolvem-se, reproduzem-se e morrem.

(Jamélia, ao olhar anos a fio para aquelas bolas que parecem rostos – marcadas com buracos de acne e covas de expressão, marcas da vida e das sementes que fizeram crescer outras sementes e outros rostos – via elementos que só ela descortinava. Só uma mulher poderia engendrar uma cidade tal qual um fruto, uma vida. Instintivamente, Jamélia sabia que havia uma ressalva: ao contrário das vidas de nós todos, as cidades, esta cidade, esta Luanda-maracujá, não pode morrer, nunca.)

domingo, 24 de junho de 2007

Agora Luanda

Se fosse uma ave, Luanda seria uma imensa arara, bêbada de abismo e de azul. Se fosse uma catástrofe, seria um terramoto: energia insubmissa, estremecendo, em uníssono, as profundas fundações do mundo. Se fosse uma mulher, seria uma meretriz mulata, de coxas exuberantes, peito farto, já um pouco cansada, dançando nua em pleno carnaval. Se fosse uma doença, um aneurisma.

Hoje, misturam-se pelas ruas de Luanda o umbundo oblongo dos ovimbundos. O lingala (língua que nasceu para ser cantada) e o francês arranhado dos regrês. O português afinado dos burgueses. O surdo português dos portugueses. O raro quimbundo das derradeiras bessanganas. A isso junte-se, com os novos tempos, uma pitada do mandarim elíptico dos chineses, um cheiro a especiarias do árabe solar dos libaneses: e ainda alguns vocábulos em hebreu ressuscitado, (...), colhidos sem pressa nas manhãs de domingo, em alguns dos mais sofisticados bares da Ilha. Mais o inglês, em tons sortidos, de ingleses, americanos e sul-africanos. O português feliz dos brasileiros. O espanhol encantado de um outro cubano que ficou para trás. E toda esta gente movendo-se pelos passeios, acotovelando-se nas esquinas, numa espécie de jogo universal da cabra-cega. Moços líricos. Moças tísicas. Empresas de esperança privada.

José Eduardo Agualusa no livro Agora Luanda com fotografias de Inês Gonçalves e Kiluanje Liberdade.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Lua Luana

«Hei, ó Mizé passa ainda essa foto, eu também quero ver.»
«Espera Mingaxi, a Suzete pediu primeiro.
«Calma meninas, ainda tenho aqui dois álbuns»
«Passa aqui Lua, a Mizé assim já vai querer ver primeiro.»
«Calma miúdas, calma, há fotos para toda gente ha! ha! ha! ha. Vá, façam fila, organizem-se por ordem alfabética, quando eu chamar respondam “PRESENTE” Ha! Ha! Ha!

Depois de muitas horas, as mocinhas tinham acabado de ver as fotos todas. Luana contou tudo às amigas e fê-las sentir-se como se tivessem estado lá também.

«Foram três meses maravilhosos, conheci muita gente bonita e famosa.»
«Dá licença..mana não vai nada? Tem fuba, tomate, gimboa, cenoura e..»
«Não vai nada mana. Obrigada. Fogo assuntei-me, já nem posso mais ficar aqui esticada no sofá a sonhar com a minha viagem. Aka, essa zungueira também.»

«Alô Mingaxi, então como é que ficou aquela cena?»
«O bodó lá no Projecto Boa Vida? Está em dia, mais logo atiro para ti, primeiro tenho que confirmar a boleia.»
«Tasse bem. Beijo»
«Beijoca.»


«Então Mingaxi o Mané aceitou te dar boleia assim mesmo sem lhe dares nada em troca? Nem uns beliscos nem nada? Ha! ha! ha!»
«Xé, o gajo é bwé aceso achas mesmo que ele não tentou nada? Dei-lhe uns beijinhos de leve, não custou nada, ele até é jeitosinho, e eu estou solteira mesmo, ele também. Amiga olha o Gomes, o fotógrafo da Revista Xipala.»
«Ya é ele mesmo.»
«Vai ainda falar com ele para nos tirar uma fotografia, mas é para sair na revista e não para ficar na colecção dele, hoje caprichei no visual e seria fixe sair na revista, não queres sair? Vai lá, ele não é teu amigo?»
«Ya, quer dizer eu o conheci num desses eventos, mas ele não é meu amigo, é só um conhecido, mas vou lá falar com ele, calma ai ele ainda está a falar com o General Canhão, depois vai lá.»
«Vai lá agora, o General também é teu amigo, já almoçaram juntos e tudo.»


Naquela mesma noite, as duas amigas conseguiram ser fotografadas, e foram todas felizes para casa pois em breve sairia a foto delas na Revista Xipala.
No dia seguinte as 9 horas, Lua recebeu uma visitinha surpresa.

«Bom dia menina.»
«Bom dia Dona Minerva.»
«Então já se esqueceste que tens que me pagar, acabou o sonho, é melhor acordares, estas no Popula e não em Joãosburgo ou Joanasburgo ou kié, foste lá nas tais passagens de modelo na África do Sul, te pagaram bwé de dinheiro e a mim não pagaste ainda.»
«Mas. Eu cheguei na quinta-feira a noite e ontem a Dona Minerva não estava em casa, eu ainda perguntei ao Zézé ele disse que a Senhora não estava.»
«Ai é?»
«Sim.»
«Mas já cheguei, sai mesmo agora no óbito da cunhada da prima da minha irmã da Igreja, e aproveitei já vir pedir o dinheiro que estas a me dever.»
«Eu fui mesmo ontem procurar a Dona Minerva para pedir mais uma semana, só até me pagarem lá na Agência.»
«Mais uma semana? Ficaste três meses fora, agora queres mais uma semana? Estas maluca ou kié? Tenho que pagar também as minhas dívidas, estava a contar ir mesmo já hoje acabar de pagar na Marta o dinheiro da Kixikila que fizemos, esse mês é minha vez de pagar, agora vou chegar lá sem dinheiro, ela vai já me espalhar nas outras para não fazerem mais negócio comigo porque sou kilapeira, já sei mesmo que ela anda me falar, esse também era já o último mês de kixikila não quero mais nada com ela, granda fofoqueira intriguista, nem sabe ainda se reparar primeiro bem feia parece macaco, bem escura tipo carvão, nariz bem grande, corpo tipo embondeiro. Mas menina não faz isso, eu preciso do dinheiro ainda hoje ou amanhã pelo menos.»
«Dona Minerva, não tenho agora, ainda nem me pagaram o pelo desfile que fizemos em Maputo e em Joanesburgo, a minha Agência também atrasa muito com os pagamentos, eu até também já quero sair de lá, mas só que já sou antiga lá então nas viagens sempre me escolhem.»
«Eu não quero saber, amanhã as dezoito horas estou a vir buscar o dinheiro, pede nas tuas amigas ou na tua patroa ou patrão, epá não sei também, aquele panina do teu chefe tem nome de mulher, se é Sasha se é o kié também.»
«Mas Dona Mi..»
«Meninéééé não quero ouvir, amanhã estou a vir.»
«Ai meu Deus, essa senhora é mesmo terrível.»

«Alô Mingaxi, podes passar aqui em casa agora?»
«Xé, estas a fazer o quê acordada a essa hora? Tu que chegaste a casa as sete horas da manhã, me deixa dormir, se já não tens sono a culpa não é minha.»
«Aié, tas bwé armada? Vem só amiga estou com um pequeno probleminha, quer dizer estou com um grande problema, vem lá vamos tentar resolver juntas. Ajuda ainda a tua amiga do coração, já esqueceste que te trouxe uns ténis da Puma? Quando viajar mais vou trazer coisas para Mizé e para ti não. Vais ver. He! he! he!»
«Ai é? Podes dar na tua amiga fofoqueira que anda a te espalhar que namoras com o marido da tia dela, fica já com ela.»
«O quê? Xé não me traz mais azar do que eu já tenho, conta bem isso.»
«Fogo, estou a dormir, logo te conto ya? Vamos já falar de tudo, de todas as makas e vamos resolver, mas agora vai dormir, lá para ás dezasseis horas estarei ai ya? Beijo.»
«Mingaxi. Alô, alô, eh! Desligou mesmo. Aka.»


Eram dezasseis horas e 45 minutos, e já a Lua tinha contado a Mingaxi o que se passara naquela manhã.

«Lua vai mesmo falar com o Sasha, quer dizer com a Sasha, diz que estas a precisar do dinheiro e que é urgente, que a dona do quartinho já está a te cobrar e que ameaçou te pôr na rua, acho que ele vai entender.»
«Hum, não sei, ele diz sempre que os clientes não pagaram, ora porque os patrocinadores ainda não honraram com o compromisso, epá não sei bem.»
«Tenta só.»
«Ya vou ainda ligar para ele e perguntar se podemos passar lá na casa dele ainda hoje.»
«Ya, liga.»

«Alô, Sasha, é a Lua.»
«Então? Estas boa minha linda?»
«Mais ou menos Sasha, liguei para perguntar se posso passar pela tua casa ainda hoje, gostaria de falar sobre um assunto um bocado delicado.»
«Delicado porquê? Quem morreu?»
«Não morreu ninguém, mas é um assunto urgente.»
«Olha minha querida estou longe de Luanda, vim visitar uns amigos e só volto amanhã, perdeste a viagem minha fofa.»
«E não posso passar aí então? É mesmo urgente Sasha.»
«Hei menina, se ninguém morreu, então está para morrer, porque essa urgência toda só pode ser caso de vida ou morte, estou aqui a relaxar não me venhas com problemas está bem. Amanhã assim que chegar à cidade falamos. Um beijinho e fica calma. Beijo beijo.»
«Alô Sasha.. Ai meu Deus, hoje só me desligam o telefone na cara.»

«Então Lua, o que foi que a Sasha disse?»
«Olha, minha linda, estou fora da cidade, perdeste a viagem, falamos amanhã beijinhos, fica calma esta bem.»
«Ha!ha!ha!ha!ha
«Mingaxi isso lá é hora para rir? Eu aqui com as minhas dívidas, toda preocupada e a miga que chamei para me ajudar esta com gracinhas.»
«Calma, estas muito stressada, a Sasha tem razão.»
«Fogo. E como se não bastasse ainda vou apanhar porrada atoa da mulher do General, vou ficar em cinzas, aquela cavalona se me senta fico em pó, eu toda palita...mas então que estória é essa Mingaxi? Quem falou o quê?
«Eh! Amiga, a Mizé falou com uma vizinha dela que na festa de aniversário da prima dela, naquela festa do Projecto lembras-te? Falou que o Tio dela fez bwé de perguntas sobre ti e que já te viu na Revista Xipala e que cruzou contigo no shopping lá na África do Sul e que vocês dois almoçaram juntos e que estas interessada nele, e não sei que mais.
«EH! Aka, aka, aka, eu interessada nele? Almoçamos sim porque ele insistiu muito, ele até estava com um amigo, mas que depois teve que sair de repente, e por acaso não dizia coisa com coisa, inventou uma desculpa qualquer, aposto que o tal Canhão lhe deu o toque para tirar o pé, para ele poder me cantar a vontade. E eu toda burra só a mostrar os marfins a toa, porra ainda bem que não aceitei ir para a casa dele. Ele me convidou para jantar no dia seguinte, mas a sorte é que havia desfile, o gajo foi mesmo assistir e estava a lançar uns olhares, depois já nem lembro bem, acho que ele elogiou-me e parabenizou-me por ter ganho o prémio de modelo revelação, e ainda deu-me o cartão dele e disse para ligar para quando quisesse e que se precisasse de alguma coisa enquanto estivesse lá podia ligar para ele, e mesmo aqui em Luanda também. E por ser armada em bem educada me espalharam que estou a andar com ele? Aka aka aka.»
«É verdade Lua, parece que a tal Mizé anda com o senhor que estava com o General Canhão lá na África do Sul no dia em que vocês se encontraram, e ele contou a Mizé que foi já falar com uma vizinha dela que parece que é a mais fofoqueira do Bairro Operário. Já viste se a Tia da Mizé ouve, dizem que a Dona Feiota é terrível, bwé matumba, e o tal Canhão parece que também é igual, dizem que é um bocado arrogante e que quando põe uma garina na cabeça tem que conseguir o que quer senão não descansa, e a tal mulher desconfia ou sabe dos casinhos dele com as miúdas, então ataca sempre, chama nomes, dá porrada e faz um montão de escândalo..também pudera perder o marido assim a toa, o gajo está podre de rico, e ela gosta de exibir-se, mostrar que tem, que pode, que faz e desfaz, porque o marido é General, as tais filhas também são assim, não viste mesmo a aniversariante armada em chique, bwé feia, e veste a toa, com tanto dinheiro que tem. Lá porque viveu em Portugal, nem sabe escrever em condições vai ainda no hi5 dela bwé de erros, aqueles amigos todos famosos que ela convidou para a festa dela, só foram por ela ser filha de quem é, mesmo o namorado dela é bwé interesseiro, arranjou já um mulato não sei se quer adiantar a raça ou kié se calhar vai salvar os filhos dela, vão ter nariz bonito e boa cor, mas se saírem só com o nariz dela wawe.. Ha!ha!ha!
«Ha!ha!ha!ha! Óh Mingaxi só tu para me fazeres rir numa hora dessas. Mas vamos ainda falar a sério, já viste se a feia da Dona Feiota ouve isso? Fama sem proveito, vou ainda por cima engordar de tanta porrada e depois fico sem o ganha-pão. Ha!ha!ha!ha.
«Ha!ha!ha!ha! Vão te inflamar amiga.»
«Xé tá amarrado nem brinques com isso. Já tenho tantos problemas na minha vida.»
«Amiga hoje não vamos sair? Vamos curtir, assim relaxas e esqueces um koxe as makas. Esqueces a Minerva, a Feiota, o Canhão e a tua amiga Mizé, é amiga isso é problema ou kié. Mas não há crise Deus vai te ajudar e eu também, vamos resolver tudo.»
«Hum! Não sei amiga, sair? Amanhã não posso estar com ar de cansada tenho que guardar forças e paciência para aturar a Minerva, Fogo mas que nome, a Minerva só me enerva. Aka!»
«Ha!ha!ha!ha! Coitadinha da Luaninha. A Minerva só vai passar as 18 e até lá já terás dormido o suficiente, hoje vamos voltar mais cedo para casa, por volta das três da manhã. E em caso de bilo, estarei aqui para acudir, ha!ha!ha!»
«Nem me fales em bilo, se bem me lembro da última vez que lutei com alguém acho que devia ter uns dezassete anos ou kié, já lá vão dez anos. Mas foi um balo forte, estávamos na praia morena, acho que deviam ser treze horas e tal, a praia estava cheia, mas bem cheia, bwé de morenos, eu estava com as minhas amigas e a minha prima Ngueve, ainda lembro da cor dos calções do Chico Zé, vermelho com bolinhas brancas, ele adorava usá-los, mas ficavam-lhe tão bem tão bem tão bem, aka. Eu que já gostava dele, até a roupa mais feia eu achava que lhe ficava bem, e o pior é que a bandida da Nina também.
A Nina era a mais acesa do Liceu, adorava provocar os rapazes e eu a odiava tanto, nem imaginas oh Mingaxi, a filha da mãe tinha os rapazes todos aos pés, todos babavam por ela, mas o Chico Zé não, e isso não era nada bom para a reputação dela, o capitão da equipe de futebol do Liceu nem olhava para ela e ela não descansou enquanto não arrancou um beijo do meu Chiquinho.
«Teu Chiquinho amiga? Mas ele era teu namorado?»
«Sim, meu Chiquinho, ele não era meu namorado, mas eu tinha quase certeza de que ele gostava de mim, tanto quanto eu gostava dele. Ele era tímido, muito reservado, mas apesar disso tinha um espírito de liderança incrível, e era muito querido pelos outros rapazes da escola a excepção do Russo, um rapaz albino que por causa do problema da falta de melanina, não podia ficar exposto ao sol durante muito tempo, jogava futebol muito bem, mas volta e meia tinha que sair para descansar, e tudo o que ele queria era exibir os seus dotes a ver se era chamado pelo professor para ser o capitão mas, infelizmente para ele o professor escolheu o Chico Zé que além de craque, veloz, e um grande líder, era amigo de todos.
Pois é, o Chico não gostava de raparigas assanhadas como a Nina, ele preferia as mais calminhas, mas não podiam ser tão reservadas quanto ele, tinham que ser um bocado mais extrovertidas que ele, mas sem exageros, lembro-me dele ter dito isso ao Custódio que era o melhor amigo dele. Eu estava na mesa ao lado, isso foi na cantina lá da escola, parecia mesmo que ele estava a falar de mim, eu fiquei tão contente que fui contar a Ngueve, mas ela não se calou e foi falar com sei lá quem até chegar aos ouvidos da bruxa da Nina.
Então no tal dia lá na praia morena, estava eu tranquilamente a conversar com as meninas todas, quando a bruxinha sem medo nenhum aproximou-se e começou a dizer coisinhas que me deixaram profundamente irritada:

«Então santinha, já sabes da última, o teu Chiquinho que tanto gosta das fingidas, armadas em calminhas e boas meninas como tu, já sabe que tu não és nada daquilo que finges ser, eu fiz o favor de lhe abrir os olhinhos, (e que olhinhos), disse-lhe apenas o suficiente para ele saber quem tu és na realidade, apenas disse-lhe que tu és só mais uma daquelas miúdas do Bairro Benfica que adora namorar com senhores casados e que ainda por cima são bem mais velhinhos.
Ele fez uma cara de decepção, mas no fim acabou por aceitar a realidade e parece que não quer mais saber de ti, e no dia seguinte agradeceu-me e disse que apesar de tudo eu era uma boa rapariga, por isso merecia um beijinho, só que o beijinho transformou-se em beijão em fracções de segundos, e que beijo inesquecível. Demorou mas consegui. Agora se quiseres podes correr atrás dele, eu já consegui o que queria, podes ir lá recolher o resto, não quero nada com ele, apesar de beijar bem, é lento demais para o meu gosto. Vai lá correr atrás do teu Chiquinho do calção de bolinhas. Ha!ha!ha!ha!
«Já acabaste de falar vaquinha? É bom que tenhas acabado porque agora é tua vez de ouvir. É tua vez de ouvir, ouvir o zuiiiiiimmmm bem dentro dos teus ouvidos.

E choviam bofetadas.


«..porque depois do tungo que eu vou te dar, vais ficar surda, sua sacana de merda, bandida duma figa, assanhada, intriguista, vadia, vaca .»
«Éhhhh acudam essa bandida devíamos lhe deixar, mas acudam, já está a sangrar por causa da cabeçada, acudam. Oh Ngueve pega a tua prima eu vou agarrar a bandida, olha ainda essa só sabe puxar no cabelo da outra, no tem força aka.»

«Me deixa vou amassar essa sacana., me deixa, me deixa oh Ngueve..»

Nisso os rapazes aproximaram-se.


«Mas então qual é o problema, estão a si chapari por causa de que afinali?»
«Mas é verdade ainda, ó mocinhas mas o que é isso? Fala ainda Ngueve.»
«Essas duas estão a se chapari por causa do Sr. Chico Zé.»
«Aka, oh Chiquito você estas a ouvir isso, é por causa de você que estão a si bateri.»
«Por causa de mim?»

«Ove, Lili ainda vem aqui agarrar a Luana um bocado.volto já.»
«Oh Chiquinho ainda vem aqui, quero falar contigo longe da confusão.»
«Fala Ngueve.»
«Chico Zé, a minha prima Lua gosta muito de ti e ela pensa que tu também gostas dele, ela disse que já te ouviu a falar dela uma vez, aliás estavas a falar que gostavas de mocinhas calminhas e ela pensou que estavas falari dela. Mas hoje a bandida da Nina foi lhe dizer um monte de coisas feias, disse que falou contigo sobre a Lua e que você lhe beijaste.»
«Eu? Beijar a Nina? Nunca conversamo já, ela esta falar a toa oh coisa.»
«Nunca conversaram? Ela inventou aquilo tudo, ka, ka, ka só para te afastar da Lua, ainda essa é perigosa, mas lhe chaparam bem.»
«Ha!ha!ha! Essas miúdas. Olha Ngueve, na verdade a tua prima tem um pouco de razão, aliás ela tem muita razão, no dia que estava a conversar com o Custódio estava mesmo a falar dela, eu gosto mesmo muito dela, mas nunca lhe disse nada porque sou muito tímido, mas quero mesmo que ela seja minha namorada, não é de hoje que ando a ver o comportamento dela, ela é mesmo boa moça.»
«Ai, Chico, é mesmo verdade ela é boa moça sim, e também quer namorar contigo. Mais logo a tardinha passa lá em casa, vou arranjar maneira de vocês conversarem só os dois. Aka, você é mesmo boa pessoa Chiquinho. Até logo então, não falha.»
«Aka, logo vou mesmo bem bonito.»

Mais tarde em casa.»

«Luana minha prima agora já estas mais calma?»
«Mais ou menos prima, aquela sacana inventou um monte de coisas, agora o Chico já nem vai olhar para mim.»
«Hum..possas é verdade..mas isso vai passar, mais cedo ou mais tarde ele vai saber a verdade e..quem é?»
«Eu vou abrir Ngueve.»
«Esta bem Lua vai lá.»
«Chi..Chi..Chico..Chiquinho...


«Quem é? Vai ainda abrir Mingaxi.»
«Luana é a Dona Minerva.»
«Sim Dona Minerva?»
«Menina, vim só te avisar que estou a ir mbora na Igreja, depois vamos voltar no óbito, então amanhã deixa o dinheiro com o Zézé, nem vale a pena tentar enganar o miúdo, é melhor lhe entregar o dinheiro porque eu também estou a precisar.»
«Está bem Dona Minerva, eu vou lhe dar o dinheiro.»
«É melhor mesmo.»

Luana estava desesperada, não sabia a quem recorrer, praticamente sozinha em Luanda, uma jovem de 27 anos a cinco anos a viver em Luanda, saiu da casa dos seus tios em Benguela aos 22 anos, já não suportava viver no meio daquele clima turbulento, a tia alcoólatra, o tio um brutamontes igualmente alcoólatra. Ambos desempregados, ela e a prima tiveram que trabalhar para dar uma ajuda em casa, ambas trabalhavam no bar do Senhor Neves, excelente pessoa não fosse a mania que tinha de querer ir para a cama com todas as suas funcionárias, Ngueve não se importava, mesmo porque também tinha um fraco pelo patrão, e achava que ele seria o marido ideal para ela. Ele era dono de alguns estabelecimentos no Lobito, e era dono também deste bar na cidade de Benguela. Conseguiam ganhar algum dinheiro mas nunca era suficiente, era preciso que os pais da Ngueve contribuíssem, o que há três anos não acontecia, pois a mãe foi despedida do casarão aonde trabalhava, estava sempre a dar cabo da adega dos patrões, o pai trabalhava na empresa de fabrico de tecidos, na África Têxtil, era um talentoso desenhista, e graças a ele e mais dois colegas, os panos da fábrica onde trabalhavam estavam entre os mais bonitos de Angola, mas com o passar dos anos, o lucro da empresa foi diminuindo e assim os seus salários também, Sapalo não suportava aquela situação, queria sair dali, mas não era fácil arranjar emprego naquela cidade. Estava há seis meses sem salário, por isso tinha que viver daquilo que a mulher ganhava, mas infelizmente a mulher ficou desempregada. Sapalo batia na mulher e em quem tentasse acudi-la. Cassinda saia de manhãzinha e só voltava a noitinha já toda embriagada e por isso já nem se importava com a porrada. Ngueve e Lua já eram crescidas e decidiram trabalhar para ajudar no sustento da família.
Lua queria de alguma maneira agradecer o facto de os tios a terem acolhido quando perdeu a família que tinha sido vítima de uma cidente doméstico, uma vela acesa na toalha de mesa e foi suficiente para mandar a casa pelos ares. Perdeu os pais e os dois irmãos, e só se safou porque no momento da explosão estava justamente a passar um fim de semana em casa da sua tia Cassinda irmã da sua querida mãezinha.
Cassinda acabou por falecer, vítima de uma Cirrose alcoólica aguda, Ngueve casou-se com o patrão que a levou para Moçambique onde vive até hoje com os seus dois filhotes, é viúva e não herdou nada do marido pois todos os imóveis foram confiscados. Neves, não pagavam os impostos. Não suportou ver todos os seus bens serem lhe retirados e teve um Ataque Cardíaco, morreu assim aos 63 anos.
Lua não teve outra alternativa senão aceitar o convite de uma amiga benguelense que já vivia em Luanda há muitos anos, e que conseguiu entrar para a conceituada agencia de modelos Cahombo’s Models, a melhor agência da cidade, e tinha agenciada os melhores top model’s de Luanda, também os mais internacionais, que passou a ser também o caso de Luana, que por ser detentora de um conjunto de ossos de causar inveja, e de uma altura desejada por qualquer basquetebolista, teve a sorte de ser logo contratada. Mas infelizmente a Agência tinha apenas nome, não era lá muito séria, pelo menos com os modelos. O responsável máximo era ganancioso e pretendia enriquecer a custa daqueles jovens talentos, que por serem fascinados por aquele mundo não abandonavam o barco, outros não o faziam porque arranjar outro emprego na capital super povoada não era fácil para ninguém.


Já eram vinte horas e Lua não tinha até ao momento nenhuma alternativa. A amiga Mingaxi não a podia ajudar, nem conta bancária tinha, vivia com as tias e as primas lá mesmo no Bairro Popular, na sua casa era cada um por si e Deus por todos, ela nem sequer tinha um emprego.
Ambas pensaram e nada. Apesar de tudo Mingaxi estava sempre bem disposta para farrar, fez uns contactos e conseguiu convites para a festa de inauguração da Boite Nguenda, convenceu Lua a ir com ela, mas Lua estava sem vontade nenhuma, Mingaxi insistiu tanto e conseguiu convencer a amiga. Lua vestiu o primeiro trapo que lhe apareceu a frente e quando eram meia-noite chegaram a Baixa de Luanda, mais uma vez Mingaxi teve que dar uns beijinhos ao Mané em troca da boleia e do convite para a inauguração da Boite. Ficaram os três para a festa, que por sinal estava quentíssima, mas Lua estava mesmo preocupada e mal disposta, estava macambúzia e nem conseguia mostrar os marfins em condições por mais piadas que a amiga dissesse, e olha que ela é mesmo boa nisso e Lua sempre acha graça, mas não desta vez.

Lua afastou-se por instantes para ir à casa de banho, quando de repente:

«Olá senhorita Lua, como está?»
«General Canhão?»
«Então passa-se alguma coisa, está com algum problema? Está triste e parece preocupada também.»
«Não, é impressão sua, está tudo bem»
«Não tente disfarçar com este sorriso forçado, eu conheço bem o seu sorriso, está preocupada sim, eu já lhe disse uma vez e volto a repetir, pode ligar para mim a qualquer hora, sempre que precisar, eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajuda-la, não sei o na realidade a preocupa neste momento mas tenho a impressão de que a posso ajudar, diga-me por favor..»
«..não se preocupe comigo está tudo bem, com licença preciso de ir à casa de banho..passe bem.»

Quando Lua voltou da casa de banho foi ter com a amiga.

«Mingaxi vamos embora estou mesmo muito mal disposta, e não quero voltar a cruzar com certas pessoas, já tenho problemas suficientes, pede ao Mané para irmos para casa, se quiseres podes voltar com ele mas deixem-me em casa por favor.»
«Luana para com isso, vamos ficar mais um coxe daqui a uma hora bazamos ya? Amiga aproveita a festa está tão boa. Calma lá»
«Mingaxi, vamos embora por favor, vou a pé..»
«Duvido, para lá com isso. Luana, oh Luana vem cá, Luana»
«Vamos dançar Mingaxi, adoro essa tarraxinha do João Ramos»
«Lu.. Mané a Lua esta a ir embora a pé..»
«Achas que sim? Fica calma vamos lá dançar depois vais lá.»
«Yá tens razão ela não vai nada bazar.»

Luana saiu da boite decidida a ir a pé, mas parou e pensou, sabia que a cidade não era nenhum paraíso e não podia sair da baixa até ao popula a pé e ainda por cima sozinha.

«Senhorita Luana.»
«O Sr. outra vez? Por amor de Deus deixe-me em paz, não quero mais problemas.»
«Problemas? Então eu estava certo, a senhorita tem problemas mesmo. »
«Mas quem disse que eu tenho problemas?»
«Você acabou de dizer .»
«EU NÃO DISSE NADA DISSO.»
«Acalme-se, não precisa de gritar comigo, eu só a quero ajudar, diga-me o que é que se passa eu tentarei ajuda-la.»
«Meu Deus!! Já lhe disse que não preciso da sua ajuda, deixe-me em paz, eu só quero ir para a casa dormir, esquecer tudo e..»
«Está bem, eu deixo-lhe em paz se me deixar leva-la para a casa, prometo que não faço mais perguntas.»
«Está bem, eu aceito a boleia, mas é só porque não tenho outra alternativa.»


Durante a viagem, o silencio foi ensurdecedor, até que Canhão quebrou o gelo.

«Lua, divorciei-me da minha mulher por tua causa, já não aguentava mais viver ao lado daquela mulher insensível, gorda, rabugenta, chata e feiosa, desde a primeira vez que te vi, penso em ti todos os dias e todas as noites, és meiga, bem educada, és única e ainda por cima não és interesseira, como se não bastasse és bonita, a mais bela de todas as mulheres.»
«Mas..»
«Ainda não terminei..eu sei que não vai ser fácil, mas vou fazer de tudo para que sejas feliz de preferência ao meu lado, quero que sejas a minha eterna companheira, faço tudo o que tu quiseres, serei só teu, juro-te que já não me deixarei enganar por essas mocinhas bonitinhas que só querem partir o meu braço, és a Mulher que eu sempre quis, tu não és bonitinha como as outras és maravilhosa, contigo eu sei que serei feliz, tu não és mulher de uma noite, és mulher para a vida inteira. Eu imploro-te fica comigo, eu sei que és solteira eu também sou, quer dizer estou a tratar dos papeis do divórcio. Não vai ser fácil, a minha ex – mulher e os meu filhos já estão contra mim, mas eu não me importo, desde que tu estejas comigo, o resto não tem importância.»
«Mas..mas..o Senhor está bem? Tem certeza que não está com febre? Você deve estar a delirar, ou no mínimo deve estar com os copos, ou então já sei você deve ser daqueles senhores que raramente assiste novelas brasileiras, mas ultimamente tem visto em excesso, e como sabe que as mulheres adoram novelas, deve ter pensado que essas falas de novela me convenceriam de que está a falar a sério, não é isso? Você só pode estar maluco. »
«Porquê que não acredita em mim? Tudo o que disse é verdade, foi amor a primeira vista, parece coisa de novela, mas eu nem sequer assisto a essas coisas, não gosto nada de ver, porque já se sabe o que vai acontecer..o meu caso é pura realidade, o que sinto por ti é verdadeiro, eu pedi o divórcio a minha mulher porque estou disposto a ficar contigo, e sei que hei-de conseguir conquistar o teu coração.»
«Estou sem palavras, não sei se fez e se sente isso tudo que falou, mas ..não posso aceitar o seu pedido, já ouvi a fama da sua esposa, e não quero ter problemas com ela, no mínimo vai sobrar tudo para mim, ela ainda vai me dar uma tareia e depois já viu.»
«Não se preocupe, eu já disse a ela para não fazer nada contra ti, porque a culpa é minha e de mais ninguém, e também disse a ela que contratei seguranças para andar contigo e para guardar a tua casa, aliás, não queres mudar de casa, esse bairro não é muito seguro e tu vives sozinha.»
«Eu sei que o bairro não é muito seguro e eu vivo sozinha, o quarto é bem pequenino, mas também não cabe nem mais uma formiga lá dentro, e ainda tenho que pagar a dívida a dona dessa espelunca..Ai meu Deus já falei atoa.»
«Não pares de falar minha linda, fala do que te aflige, abre-te comigo, sou teu amigo e quero ser muito mais do que isso, quero que vejas em mim aquele com quem podes contar, em quem podes confiar, fala amorzinho.»

Lua tentou, fez coragem, mas não conseguiu conter-se, as lágrimas tomaram conta do seu lindo rosto, Canhão comovido chorou com ela sem sequer saber o que a deixava naquele estado, nem parecia o mesmo homem, o General temido por muitos e que só chegou aonde chegou por ser o durão que todos conheciam, mas naquele instante chorou como se a dor fosse dele também, nem ele nem a Lua acreditavam no que se estava a passar.

«Deixa-me ajudar-te diz-me o que se passa.»

Ela fez um tremendo esforço, mas lá contou o que a afligia.
Canhão ofereceu-se para pagar a dívida e dar-lhe um apartamento maior mas Luana negou, agradeceu por tudo, mas não aceitou a ajuda que Canhão lhe oferecera. Despediu-se dele e foi para a casa, chorou tanto, tanto, tanto que quando deu por ela já eram duas da tarde, chorou, mas acabou por adormecer despertou as duas porque alguém batia insistentemente na porta, era a sua amiga Mingaxi.

«Amiga, fiquei preocupada, liguei-te e só caia na caixa de correio, eu e o Mané saímos a ver se te encontrávamos, ainda perguntamos aos putos que ficam ali a ver os carros se te tinham visto a bazar a pé, mas um deles disse-me que tinhas bazado com o General Canhão, é verdade?»
«É verdade amiga, nem eu mesma acredito que vim com ele para a casa.»


As duas ficaram o resto da tarde na conversa, Lua contou tudo a amiga, que ficou estupefacta com o que ouvia, só achava que a amiga devia ter aceite a ajuda do General, que se mostrou disposto a ajudar e em troca queria apenas a companhia dela. Para Mingaxi não custava nada tentar já que ela estava livre e ele também segundo o que ele mesmo disse, e ela achava que pela maneira sincera como falara, ele merecia um voto de confiança. Por isso, sem consultar a amiga, pois já sabia o que ela lhe diria, telefonou para o General, enquanto Lua dormia mais um bocadinho, marcaram um encontro e recebeu a quantia exacta para o pagamento da renda que a amiga devia há três meses. Eram necessários apenas seiscentos dólares, mas o General fez questão de dar quatrocentos dólares a mais caso fosse necessário. Mingaxi tratou de tudo com o Zézé e quando eram vinte horas foi ver como estava a sua querida amiga, contou-lhe tudo o que fizera sem o seu consentimento e...

«Porras, Mingaxi, fizeste isso porquê? Ele assim deve estar a pensar que eu sou uma fingida armada em que não queria mas no fim aceitei me vender, como mais uma dessas bandidas que só sabem partir o braço dos Generais, eu nem quero saber, vais ligar para ele e dizer que vais devolver o dinheiro, vai já ao Zézé buscar o dinheiro, e podes chamar os miúdos para nos ajudarem a pôr os meus trapos na rua, vou dormir debaixo da ponte, vou ser assaltada e violada por dois seropositivos..porra,mas também nessa merda de cidade nem ponte tem. aka»
«Amiga o que é isso, fica calma, tu não te vendeste coisa nenhuma, ele sabe muito bem que eu fiz tudo sozinha, eu disse-lhe que tu não sabes de nada.»
«E achas que ele acreditou? Foda-se tu és minha miga, no mínimo ele deve ter achado que eu te pedi para inventares essa porcaria toda, só para poder ter o dinheiro, achas que foi fácil para mim dizer que não queria o dinheiro, eu bem quis aceitar de uma vez, mas pensei nas consequências. Agora devo-lhe mil dólares, sabias que aumentaste ainda mais a minha dívida, ahn, sua burra, agora devo dinheiro a um General e logo quem, foda-se parece que não pensas pá..»
«Eu nem vou te ligar porque se eu me chatear nem sei aonde é que isso vai parar, tu é que estas armada em parva, burra és tu, quem disse que deves dinheiro ao General, não deves porra nehuma pá, ele deu-te o dinheiro, não foi um empréstimo, sua parva fica lá mazé quieta porque já não tens que aturar a Dona Minerva, pelo menos por enquanto.»
«Fogo, tu também, nem sei que ideia maluca foi essa, mas está tudo bem, foi para me ajudar e, está bem, agora é comigo, por favor não voltes a fazer isso, e nem te metas mais nisso, obrigada pela ajuda, mas agora deixa por minha conta, eu depois falo com o General.»
«Está bem amiga, mas vê ela se ficas mais calma. Eu agora tenho que bazar tenho um compromisso inadiável, eu e o Mané, já sabes ..»
«Pois é só tinha mesmo que dar nisso, tantas boleias...vai-te embora sua maluca.depois falamos.»

O resto domingo foi mais calmo. Mas Lua não parava de pensar no dia seguinte, tinha que falar com Canhão por mais que lhe custasse, tinha que esclarecer tudo, e dizer abertamente que não teve nada a ver com o plano da amiga e que não pretendia ter nada com ele, que no máximo podiam ser bons amigos.
Na segunda-feira a primeira coisa que fez foi ligar para o General, mas foi em vão, o telefone chamava e ninguém atendia. Insistiu durante a manhã toda mas, nada.
Sasha ligou para ela a dizer que tinha que estar na Agencia as 15 horas pois teriam uma reunião e a seguir ensaios, já que se aproximava mais uma temporada agitada, em breve se realizaria um dos maiores eventos de moda da capital, o Luanda Fashion Week, receberiam estilistas internacionais e por isso os modelos tinhas que dar o seu melhor, já que em ocasiões do género alguns modelos recebiam grandes propostas de Agências Internacionais. Luana recebeu o pagamento dos desfiles que fizera anteriormente, participou do ensaio e mais tarde voltou a ligar para o General que mais uma vez não atendeu. Decidiu então não voltar a ligar.
Mas surpreendentemente o telefone tocou e era o General, ou melhor era uma chamada feita a partir do número dele mas a voz do outro lado da linha não era nada masculina.

«Oh minha cabra de merda, não achas que já chega de ligar, o filho da mãe do Canhão viajou e esqueceu de dizer às suas vaquinhas, agora estão todas a ligar e eu faço questão de despachar uma por uma, não voltes a telefonar se não queres ter problemas maiores.»

E sem ter dito uma única palavra, Luana olhou para o telefone e ficou totalmente sem palavras.
A noitinha contou tudo a Mingaxi que como tinha muitas amizades sabia das novidades a tempo e hora.

«Amiga, afinal não sabes, parece que o General foi chamado para ir ajudar a resolver uma maka lá em Zimbabué, parece que tem lá uma guerra que nunca mais acaba e como os angolanos parece que são bons em ajudar os outros a resolver essas coisas, o Presidente mandou uns tantos para lá e o General também foi chamado, assim de emergência, acho que vão ficar lá pelo menos dois anos.»
«Ai é? Afinal? Aka, isso afinal é assim vão assim de emergência, aka, não queria nada ser militar.»
«Yá, amiga, é duro...mas fala..e o Luanda Fashion Week começa quando?»
«Fogo, tu também só pensas nisso, aka..vai começar na próxima segunda feira, estou a rezar para ser contratada por uma Agência Europeia, já não suporto o Sasha.»
«Aquela gaja é mesmo chata né amiga? Tu mereces coisa melhor, também rezo bwé por ti.»
«Aka, obrigada amiga.»

O resto da semana foi tranquilo. Na semana seguinte realizou-se o Luanda Fashion Week, a Agência Sul Africana de Moda “Kwazulo Fashion” contratou alguns modelos angolanos e Lua não ficou de parte, o contrato era de cinco anos, e ao fim desse tempo os modelos podiam continuar agenciados caso quisessem, ou podiam voltar para Angola.
Mas Luana optou por continuar na Africa do Sul, tinha um pequeno apartamento próprio, preferiu abandonar o mundo das passerelles mas continuou a fazer trabalhos somente como modelo fotográfico, conheceu Abdul, um moçambicano residente na África do Sul há 15 anos, apaixonaram-se mas não se casaram, nenhum dos dois pretendia fazê-lo, nem sequer viviam juntos, e parece que a decisão dos dois de continuar assim foi a mais acertada.
«Então amor a sessão fotográfica já acabou? Jantamos juntos ou quê? Queres que eu vá para tua casa ou vens tu para minha?»

Indira Mateta

quinta-feira, 21 de junho de 2007

contraste

Tinha vistas atraentes, cabelo longo caído nas costas. Era uma beldade total. Seu corpo formoso brotava um perfume agradável. Nada de defeito, tão visível, que me causasse repulsa imediata. Bastante atenciosa e acima de tudo sensual. Seus movimentos enterneciam. As vestes e o calçado, totalmente chique, capaz de provocar uma vénia.
Fiz algum esforço, levantei-me, fui ao encontro dela no parapeito onde estava, em pé.
-Olá, como está? -saudei.
-Diga!
-Estou a saudá-la. Como estás?
-Ah, tou bem.
-Assustada, ein?
-Não, até não.
-Tens uma formosura invejável. Estou doente por ti, imediatamente, assim que te vi. Uma verdadeira loucura, sem cura. Mataste-me, sabe! - desfiei o rosário como não podia deixar de ser, para persuadi-la a aceitar-me como dono do seu mundo imaginário.
Mas era realmente um ensaio dos truques de paleio que usei aos 18 anos, já esquecidos. A idade ofuscou o resto. O jeito de palear, o flirt verdadeiro às damas não é o mesmo.
No fim do paleio, pouco por sinal, a dama entregou-se. Foi um delírio. Chama-se Mascote.
-Mascote? - interroguei.
-É, chamo-me Mascote. É o meu nome. É assim que me chamam. Mascote.
-Prazer, eu sou Klint.
Vociferei algumas palavras pouco audíveis que a fez encostar o ouvido junto a minha boca. Sentia-me honrado, vitorioso.
-Para onde vamos?
-Tu é que sabes - respondeu ela.
-Ula lá, ula lá! ai é?
-Então vamos.
Seguimos de motorizada e fomos parar a uma esquina.
"Chiça, esta pobreza, mesmo na rua!"
-És nova por aqui?
-Não, estou cá há bastante tempo.
-Mas raramente aparece. Não passeias?
-Passeio sim, tou sempre na rua.
-Tu é que andas pouco.
-Sim, claro, tenho andado ocupado com afazeres - disse eu.
-Não tens um sítio melhor? Aqui não dá, é indecente. Aqui não dá, não é possível, estamos a ser vistos, não dá mesmo!
Enquanto falava, as minhas mãos percorriam dos cabelos a baixo. Um verdadeiro deleite, raro para quem tenha dificuldade em convencer uma heterosexual. É uma vitória, uma conquista, graças ao esforço da boca, a boca faladora.
Mascote abraçou-me, esqueceu-se do que dissera antes, deixou-me fazer, livremente, o que fazia.
Ela vasculhava dentro das minhas vestes. Já não era eu. Estava deslocado, meio inconsciente.
Resisti aos impulsos, com bastante esforço, deu certo. Fiz o mesmo sobre ela. Com respeito.
Percorri as mãos pelo corpo quente de Mascote. Seios flácidos, que eu não podia ver, só sentir, apalpar como quisesse. Não havia oposição nisso. As minhas mãos, malandras atingiram o púbis peludo. Mascote tentou impedir, enquanto beijava-me. A mão...a mão... descendo...descendo.
Um órgão duro, como estava o meu. Larguei.
-Estás assustado? - questionou ela.
-Quê aquilo? - indaguei.
-Vá ao que te interessa, mais abaixo, tás a ver - assegurou Mascote.
Aquilo causou um enorme arrepio, que alterou o meu estado de espírito. Tentei, encorajado, por ela mesma. A mão foi. Achou. Não havia nada saliente como no homem.
"Bissexuada! Que azar! Nunca tinha visto aquilo" - pensei. Era um contraste
Sentes-te bem? - perguntei.
-Sim, para quem me conhece, isto aí é normal.
-Não queres, ein? Não queres? - insistiu.
Aceitei, bastante arrepiado.

Francisco Luciano Fernandes

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Lua de ferro

Ferro, muito ferro que se amarfalha, entrecruza, que se corta em ângulos mais ou menos abertos, em diagonais, rectas e sabe-se lá mais o quê. Ferro em brasa, na brasa quente e húmida do fim de tarde. No topo de um prédio, uma lua em quarto minguante acabado de começar. A segurá-la, lá em cima, por cima do sol que já quase é zero, o ferro, a confusão de metal entrelaçado e invisível para quem a vê - essa Lua redonda, forjada, ferrada, a dar-se ares de cidade.

Maria Concebida no Mato

Um "ui" sibilante de uma mulher e um "ai" sussurado de um rapazinho deram o sinal. O bichinho lá subiu a trompa, chocou com o ovo e rebolaram juntos até cair em chão fértil. Assim, numa multiplicação apressada de células, surgia Maria Concebida no Mato.

Nascer até foi fácil. A primeira cara que viu foi a da kitandeira, essa mesmo, a da verruga gigante na ponta do nariz. Obra do acaso ou força do destino, esse momento ditar-lhe-ia a vida. Dali para a frente, naquela cubata no mato que depois virou cidade, Maria Concebida (com muito pecado...) viveria aterrorizada com a verruga que, dia após dia, volta após volta, lhe cresceria em forma de cruz no sítio onde, dizia a kota da frente, estava guardado o maior segredo de uma mulher - o coração.

terça-feira, 19 de junho de 2007

João, 22 anos

O futebol. A bola. A cidade, os buracos e. O futebol. Sempre ele, sempre lá. Os miúdos gritam e festejam e agarram-se como se de uma Taça do Mundo se tratasse - tinha sido marcado mais um golo.

João Carlos, 22 anos, está sentado no parapeito de um prédio qualquer, postura serena, tom de voz calmo e ponderado. Está de costas para a partida "decisiva" que se desenrola ali, naquela rua cinzenta e escura, pouco iluminada. «Gosto muito de fazer teatro!!», atira.

Neste preciso momento um dos "Mantorras" joga-se para o chão e rebola. Faz teatro, sim, mas à jogador-da-bola - pindérico, espalhafatoso e desagradável. Não o João, mas o "Mantorras". Não o teatro, mas o futebol.

«A peça que mais gostei de fazer chamava-se "Madana", de um autor angolano. Esteve dois anos em cena, com estreia no Chá de Caxinde, passagens pelo Teatro Avenida e pela televisão, até.»

Ah, a televisão. Sempre 'elas' - a televisão, a bola (e o "Mantorras"). Deve mesmo ter sido aí, na T.V., que aprenderam a correr, rua-fora e aos berros, «é falta! é falta!». Não era.

Musseque

Becos, becos, becos e mais becos. Becos. Lata da vida, que não tem lata para ser melhor, nem mais justa. Sequer.

A personagem não tem nome, nem voz. Ou terá, mas eu não quero dizer. (Nem ela quer que se diga.)

Velhos, altos, gordos, novos, Negros. Brancos?, poucos, mas são percursos, sempre. Não parecem.

Desconseguiram! (Que raiva.) Não 'ela' (a personagem), não 'eles' (os outros), mas alguém em nome 'deles' (o Zé Du, por exemplo).

Correr

Yannick estava apaixonado. A sua história era de amor e de vida. Por esta ordem. Era fim do dia e a luz ia fechando os olhos.

- Pum! Pum! Pum!, e desata a correr. Três estrondos tinham ressoado pelo bairro, disparados pela mão grossa e pesada e mal-amanhada de Yannick.

Tinha-se decidido. Ia resgatar Francisca do seu lugar, do lugar onde os pais a seguravam, sem hipótese de cirandar a sua beleza casa-fora, rua-fora.

domingo, 17 de junho de 2007

Puto Klinnsmann

No meio da rua empoeirada um puto chutava uma bola, pequena. Curiosamente, o esférico apresentava-se com a palavra “Portugal” inscrita em tons dourados num fundo bordeaux, quase tinto-alentejano.

Um puto de 3, não, talvez 4 anos, chutava-a contra a parede e deixava-a rebolar, ora para os meus pés, ora para aquelas águas paradas, verdes e mal-lavadas. E repetia o gesto, sempre.

“Como te chamas?”, perguntei a determinada altura.

“Klinnsmann”, respondeu. As sílabas conseguiram esvoaçar um espaço curto - o espaço deixado pela falta de dois dentes -, de certa forma envergonhadas por um nome de proveniência insegura.

Klinnsmann – avançado alto, rápido, espadaúdo. Foi artilheiro, durante anos-a-fio, de uma águia real alemã, vencedora e quase inesquecível pela vontade e pela organização. Nunca pela sua beleza - mas, digamos assim, o futebol não é como as mulheres. Para ser bom não precisa ser bonito. Não, não precisa.

“Klinnsmann?!, e sabes quem era esse senhor?”, perguntei, espantado, usando apenas a retórica ganha no sofá, enquanto assistia a futebóis de terceiro nível, de terceira qualidade e de interesse quase nulo.

“Hum hum", abana a cabeça, satisfeito por saber a resposta para tão difícil pergunta. "Era um alemão, jogador de futebol”, remata, de forma escondida mas assertiva, sem renegar um certo bocejo, do género larga-me-da-mão-porque-já me-perguntaram-isso-vezes-a-mais.

O cenário, claro, é africano, puro e duro. Podia ser Luanda, sim, podia mesmo. Sensorialmente forte e capaz de desregular o melhor dos relógios suíços, pela sua intensidade mística mas, sobretudo, pela força cultural de um continente velho. Literalmente velho.

O puto despede-se com um acenar, levantando os dedos e abanando-os na direcção desejada.

Quase a lembrar o Klinnsmann mais-velho ainda no relvado verde quase branco, após destroçar um Benfica de trazer-por-casa, numa noite fria, seca e impessoal, típica de uma Munique que puto Klinnsmann desconhece, longínqua e inimaginável.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Flor

Morreu com um sorriso de palhaço pintado na cara e um coração ainda palpitante. Antes ainda, antes mesmo, calçou os sapatos vermelhos, salto alto afilado a querer furar o chão, antecipação do seu próprio enterro na vala comum dos sem nome. Também pôs baton, aquele violeta que um dia lhe deu a fama de “Flor”. De epíteto para epitáfio. Flor cravejada na pedra tumular imaginária. Mas tudo isto seria depois, só depois.

Neste momento ela sabia que era a última vez de tudo. Rezou um terço. Não porque fosse religiosa. Mas uma puta também reza. Avé-marias, glórias ao pai, salve-rainhas e pai-nossos regurgitados depois do último serviço onde provou o último, ultíssimo homem das suas coxas. Quis um orgasmo mas desconseguiu. Esse ficou-se mesmo pelo primeiro.

O homem bazou mas não pagou. “Fazer mais como, então?”, pensou, mais por força de hábito de o pensar, do que por ralação. Levantou-se nua. Pôs a girar uma balada dos kotas. “Panguiami uafua...” – “o meu amigo morreu”. A viagem lenta na escala musical com sabor a noites do trópico austral reavivou silêncios comprados, silêncios fingidos, silêncios inviolados. As paredes do quarto entraram em ebulição. Memórias a todo o vapor.

Mas disso Flor nada sabia. Por isso limitou-se a dançar. Não dançou sozinha. Em abraço sem braços, um muxarico. Foi das poucas coisas que conseguiu trazer na fuga apressada de um planalto central atordoado pela guerra que estilhaçou de vez a paz podre. Na caminhada desde o seu Bairro de São João até à praia Morena, sempre na mão aquele pau de bater funje a que baptizou de “Tu”. Com ele preparou fuba, quando havia. A ele se abraçou em cada uma das noites que passou no mato, em fuga apressada. Com ele matou o bandido que numa noite húmida e sem aviso quis chorar nela as dores de homem-sem-mulher-há-bué. Um golpe na cabeça bastou. Mais morto menos morto, ninguém se importava. Eram tantos, todos os dias. Tal como o orgasmo, o morto da sua vida também se ficou pelo primeiro. Ela mesma seria o segundo, adivinhava-o nessa irracionalidade de pressentimento. Sorriu com a ideia.

Aumentou o volume do balada-do-amigo-morto-do-cantor. Apertou com força o “Tu”, como fazia durante as noites (quase todas) em que ele era o único fiel companheiro de cama. O corpo humano com contornos de pau seco e o pau seco com ares de humano dançavam agora quase em tarraxinha. Os restos de funje de milho colaram-se aos peitos nus de Flor. A luz da única lâmpada pendente do tecto descascado começou a vacilar até sumir por completo. O som calou-se. Ficaram a penumbra e os espíritos de sempre. Lá fora, os putos de rua gritavam, em bocas recheadas de “xé” e de “filho da puta”. Não ligou, nada daquilo lhe dizia respeito. Ela era puta, a sua mãe não.

Deitou o “Tu” no colchão podre e afagou-lhe a base. Foi então que olhou o prostíbulo em jeito de despedida. Com nenhuma saudade, com alguma luz, com muitos berros dos miúdos a entrar pela janela daquela casa degradada da baixa de Luanda. Paredes podres, soalho de madeira podre, a decadência em estado maduro. Também o ar era sujo. À medida que o olhar se prolongava e a noite avançava, ele passou do castanho para o cinzento até se decidir pelo negro. A algazarra lá fora continuava. Também negras, as vozes. Bolões de putos que se encontravam e degladiavam. Já nem ligava. “Luanda tem limite?”, interrogou-se sem querer. Pensava que sim, quando aqui chegou, há muito anos, com os carimbos de “refugiada”, “deslocada”, “desgraçada” e “paiada” estampados no destino. “Por isso virei puta – tinha etiquetas até nas orelhas, como as vacas”, dizia em jeito de brincadeira séria, quando lhe perguntavam a história da sua vida. Mas agora tinha dúvidas. Sempre que pensava que não dava mais, que tudo ia rebentar, a cidade-elástico esticava um pouco mais e o equilíbrio mantinha-se, sabe-se lá como. “Não, Luanda não tem limite”, decidiu-se. Os gritos, lá fora, viraram guturais.

Tremeu. Na escuridão total de si e do quarto, ela tremeu. Não se ouviram chocalhos, antes o silêncio de um filme mudo sobre uma qualquer Nova Iorque trepidante. O corpo arrepiou-se. Pele mulata, cara amarrotada, carapinha curta e mal amanhada, olhos negros e baços, bunda arrebitada, seios-penduricalhos, três décadas dessincronizadas de carne em tremeliques involuntários. “Como as vacas loucas”, gemeu. O último esgar.

E foi então: Flor nua, Flor crua, com ecos de planalto na cabeça, as queimadas no horizonte das noites escuras e o caminho sempre distante, sempre comprido, menos possível (“tratatatata!!!”, rugiu uma aká, lá fora). E o caminho em chamas, o caminho em bombas, o caminho em nada (“tratatatata!!”). E o mato, o mato, as colinas suaves do planalto, o rugido, os homens, as crianças, o homem com o cérebro de fora, que caminhava, o planalto, o fogo, o vermelho, o amarelo, o laranja, laranjas ácidas que atiçavam a sede, e o caminho, o caminhar (“tratatatata!!”), os caminhantes em manada como as vacas, vacas como ela, que se tornariam em vacas como ela, e o “Tu” borrado de funje de milho, e o homem morto, e o caminho, o caminho, o caminho, e o cheiro a mar vindo das terras de Benguela, cidade prometida que ficava no fim do caminho, o caminho, o caminho do negro, e a montanha tornada morro, e o caminho e Benguela, e a estrada, e o monte de restos humanos, kazumbis e o caminho e o final, o final do caminho, as areias da praia, Morena como ela, Praia Morena debaixo da chuva de Verão. Final da caminhada, início de outro caminho (“tratatatata!!”). De camião, a pé, Canjala perigosa (“tra”), Sumbe (“trata”), Kuanza (“tratata”), Luanda (“tratatatata!!”). E o caminho, sempre o caminho, agora de pernas abertas em muceque podre do centro, sentença da capital. E o caminho no fim, o fim do caminho, o fim. “Agora”, pensou, “agora o fim do caminho”. Coração em síncope, rubor em face negra, a escuridão (“tratatatata!!”) do prostíbulo.

Em transe e passos trôpegos calçou os sapatos vermelhos, salto alto afilado a querer furar o chão. “Tratatatatatata!!”. Pegou no batôn violeta. “Baza muadiê, eles estão aí!!”. Com mãos trémulas riscou os lábios e a face. “Baza, caralho, corre, vão nos bondar!!” Baton em movimento apressado de bastidor de um circo quase a começar. “Tratatatata!!”. Parou em frente à janela sem vidros. “Tratatatatatata!!” Inspirou. “Puuummmm!!...” Suspirou. A bala perdida cravada no peito. Fechou os olhos e morreu. Com um sorriso de palhaço pintado na cara e um coração ainda palpitante.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

À cidade da Lua

Luanda é a cidade que não pará e na noite de fim de semana não há estacionamento, não há cadeiras vagas nos restaurantes da ilha, nem lugares para assistir o cinema no Belas Shoping, onde se venderam bilhetes para lugares que não havia. Muitos assistiram ao filme sentados no chão, mas o mwangolé precisa muito de... como é mesmo? Lifar
E há modas em Luanda, mas lifar nunca passou de moda. Contudo, há modas visando um incremento do verbo lifar. Oh meu Deus perdoa-nos por essa necessidade de viver, de rir, de amar, de sonhar, e lifar, chilar ao máximo. - Ché eu ainda não tenho filhos para cuidar, Deus ainda não me deu, posso e devo lifar, é agora, agora é que devo lifar ... Assim fala o mwangolé, enquanto vai adiando a altura em que finalmente terá que parar de curtir e começar a bumbar.
Por exemplo, dar grandes farras de aniversário tá na moda, tá in, é chiqui. Tá moda dançar, conviver, brincar, zoar, é bom constatar que tudo isso continua na moda em Luanda, porque isso faz as pessoas felizes, abrir a boca e dizer-se tudo que se pensa zoando*, é algo que faz as pessoas felizes. Mas para curtir é preciso dinheiro e para quê que a gente quer o dinheiro? Se não para lifar ?
Já deixei de tentar descobrir se o dinheiro traz felicidade e se calhar, não estou a interpretar bem este verbo e agradecia até se alguém me acompanhasse no exercício, mas estou a tentar entender e talvez conseguir conjugar este novo verbo, se for capaz.
Estar na moda é fundamental para habitar a cidade da lua, onde nos surpreendemos a cada passo, onde quase nada é previsível e nem sequer suposto de ser como deveria ser. Só que esta cidade é tão optimista, por isso tá sempre na busca, na procura de respostas. Respostas para o lixo, para os buracos nas estradas, para os assaltos, para o desemprego, para o desleixo, para o sofrimento das nossas zungueiras e vendedores de rua perseguidos pelos fiscais.
É como se sofrer fosse moda também em Luanda. E na verdade, afinal sofrer é moda sim em Angola, bem Angola é África, não é um Congo como dizem , é só, apenas, África. E apesar disso... Luanda tem os seus super mans, a funcionar um bocado tipo aqueles bruxos ou médiuns que tudo sabem, tudo resolvem, tratam de todas as maleitas e de nenhuma, desde que se consigam curar da "comichão".
Luanda é para gente que consegue convencer o polícia a entregar de volta a carta de condução, sem pagar a gasosa, talvez apenas, uma cerveja tomada a dois e um bom trecho de conversa, e o polícia despede-se todo contente. Esquisito. Mas como alguém tem paciência e ainda por cima consegue dar a volta a esse senhor polícia de Luanda?
Senhor polícia por obsequio. Não! Agora é que irritaste mesmo o polícia!. Por obsequio??? Na verdade, por vezes, o polícia da Lua é das coisas mais contraditórias e frustrantes com que nos podemos deparar. Mas temos também aquelas funcionárias públicas e bancárias que gostam de ver a fila crescer e as filas que não andam, cresce a nossa impaciência, vai-se a nossa manhã, enquanto as belas damas sedutoras e enbonecadas vão atendendo os amigos lá do outro lado do balcão. Os cartões do multicaixa são gratuítos, até a malta começar a perdê-los talvez. Mas a seca é gratuita também.
Dizem que não adianta pedir o livro de reclamações. Não faças isso vão dizer: Esta não é de cá. Dá vontade de repetir o Matias Damásio, mais uma vez e de novo, porque elas exibem-nos aquelas caras tipo nada, com um à vontade tá bem tá, vai lá vai. Como se não bastassem todas as outras maleitas de Luanda que se vão arrastando como se nada fosse, quando afinal, também a vontade de mudar se tem arrastado aqui na Lua.
Isso notamos no dia em que, na Chicala, depois de comer um peixe grelhado de primeira, com uma banana pão e uma batata doce, mais uma cebolada à maneira, levantamos para ir ao banheiro julgando que o banheiro, como sempre seria a beira do mar, e pedimos a alguém por perto: «Vá Kiluanji acompanha-me ao banheiro», é que vamos precisar de um guarda costas. Ao ar livre, de rabo para lua e para quem quiser ver, mas foi-nos apresentado um banheiro.
E tem secção para homens e para mulheres. Basta pagar 20 kwanzas pela menor e 50 pela maior. Ai é? Kiluanji diz que eu sou menor, para pagar 20. Bem, não é isso, é assim: 20 kwanzas pagas pelas necessidades menores e 50 pagas pelas necessidades maiores e esteja à vontade madame.

Isa Bela Yana

domingo, 3 de junho de 2007

na ilha

A bola de espelhos gira infernalmente debaixo do jango do bar de praia com músicas caribenhas, homens a comer lagosta com as catorzinhas e a trabalhar os investimentos no labtop. O som do mar vai amansando os pequenos desesperos de um difícil exercício do quotidiano.

A planta que dá sonhos

Contava ter 300 anos desde a sua plantação por N'gola Kiluanje. Serena, móvel somente pela folhagem e estática pelo tronco encravado com raízes cuja profundeza só a terra pode dizer. Folhas verdes, completamente verdes, a ostentar uma vida difícil de acreditar, a julgar pelos séculos que carrega.
As folhas caídas, secas com o passar do tempo foram inúmeras, levadas pelas águas das chuvas, ou pelo vento, sem que se reduza a sua vaidade exuberante de planta.
Ela foi deixada pelo rei que a desejava como sombra, enquanto estivesse a descançar quando chegasse à Luanda proveniente de Pungo-A-N'dongo. Plantada com as folhas para baixo, segundo contam idosos, a mulemba é testemunha de escaramuças de homens desentendidos em política.
Querendo ela ser alimentada e acarinhada como no tempo do rei que sabia bem cuidar dela, sem rodeios, forçou um sonho. Juntou as forças de vontade vegetal-humana-espiritual para atingir a mente telepática de alguma pessoa que pudesse retomar o dever de N'gola.
Ela fez tudo, sem sair do sítio. conseguiu. Uma comunicação milagrosa e incrível. Dona Etelvina, mais-velha que goza de prestígio social pelo agasalho aos hóspedes e partilhar dos problemas sociais, foi ela mesma. Sonha. Uma árvore qualquer, frondosa, folhas acastanhadas e amareladas, em tempo seco, falava para ela em voz humana, na língua que fala, sem erros de semántica, nem de fonética.
- Traga-me comida! Traga-me comida, Estefánia! Posso morrer se hesitares. Não tenho mãos, não tenho boca. Por favor, vê onde estou! É próximo de tí.
Mas, na realidade, ela não dava sinais de ser uma faminta. Parecia-se com
uma árvore cheia de vigor, nutrida e amada, pois toda a gente apreciava-a. Ninguém passava por ela sem lançar as vistas à sua folhagem.
Fazia exigências justas do ponto de vista humano. Mais atenção, adoração e carinho, pelo facto de ser algo simbólico herdado de um ancestral, cujo nome, N'gola originou o de um grande território chamado Angola.
Dona Etelvina desperta, calcorreou mentalmente sobre tão grande sonho. era estranho! "Uma árvore pedir alimento, onde é que já se viu?".
Acordada e sem vontade de voltar a dormir, pestanejou, baixou a cabeça para accionar a imaginação em direcção à planta. Ir ver a única árvore que havia nas imediações, neste caso a tal mulemba do rei.
Não havia outra semelhante na cercania. Era a única.Dona Etelvina sabia da história. Foi-lhe contada por distintas pessoas, várias vezes, em muitas ocasiões e era do seu domínio total. Daí, resultou-lhe uma ideia:
- O rei deixava migalhas de comida nesta mulemba!
-Ahan!
-Só tinha de ser.
-Então...tem razão. O rei há muito que já morreu. Tem razão esta mulemba!
Dona Etelvina esperou os raios de sol raiarem e começou a preparar a iguaria: batatas fritas com bife, pão, maionese, gasosa, cerveja, açúcar, manteiga e água conservada em sanga.
Não se via ninguém ainda a transitar aquela hora. O vento causado pelo cacimbo soprava amistosamenete. Etelvina encosta-se à mulemba, poisa o cesto e não conseguia divisar as folhas lá para cima da árvore. Até mesmo os pequenos ramos roçavam-se pela cabeça.
A entrega foi antecedida de um anúncio:
-Oh, nossa mulemba, tu que não me vês, só eu que te vejo, eis a sua refeição. Não tenho grandes posses para o seu sustento com este corpo todo que tens. Perdoe as minhas limitações e a impossibilidade de cá voltar. Aproveite o máximo que puder e viva com saúde!
Um ramo que pendia sobre a cabeça assusta-lhe levemente com uma carícia inesperada. Parecia a mão peluda de N'gola que passara sobre a sua cabeça, em gesto de agradecimento.
O pano à cintura cedeu para baixo, apanhou-o, amarrou-o do mesmo jeito e com mais eficácia. Deu meia volta, não olhou atrás. Marcou passos lentos de
regresso à casa com o sentido do dever cumprido.
Etelvina pensava nas baratas, formigas, ou cobras capazes de invadir a oferta da Mulemba, muda e surda. Não receava intenção de homem algum que fosse invadir e aproveitar-se daquele recheio. Não haveria quem ousasse retirar algo daí. Não haviam gatunos.
No dia seguinte, Etelvina acordou disposta a visitar a sua amiga árvore para constatar o sucedido. De tanta ansiedade, a mais-velha esqueceu-se que tinha de se lavar, nem se recordou da higiene bocal.
Dirigiu-se ao recinto da Mulemba com a atenção virada às coisas deixadas. Lá estava ela, parecia mais alegre. Dona Estefánia bateu palmas de contentamento e espanto.
-Eh, eh, eh (issunge) milagre!
Toda a comida, bebida inclusivamente fora tudo consumido. Garrafas vazias, latas espalhadas, com algumas partículas de comida era um cenário aí visível. Curiosa ainda de averiguar o que via, contornou o tronco.
Em pé, por bastante tempo, Estefánia cabeceava de tal maneira que entendeu sentar-se. Adormeceu por cima das folhas. Em poucos instantes sonhou:
- Mais-velha, a tua geração foi abençoada. De hoje em diante terá grandes sucessos. Fique descançada, a paz abundará em sua família.
Uma formiga que andava pela testa despertou-lhe do ligeiro sono. Ergueu-se e foi-se embora para casa. Recordou-se que deveria dizer:
-Mulemba, nossa mulemba, minha mulemba, N'gola morreu, eu estou cansada, vivo sob cuidado dos filhos. "Não sei se ouviu!", pensou Estefánia.
Ela comunicou a vizinhança para a tomada de conhecimento.
-Afinal a Mulemba passava fome, fui eu que lhe dei de comer. Até pediu-me em sonho, vejam lá! dizia a senhora. Por pouco teríamos desgraças com este pau. Um pau que fala mana. Está mesmo a vir no sono. É milagre (issunje).
A informação corrreu rapidamente por toda a comunidade. Algumas pessoas começaram a arrancar ramos para plantar nos seus quintais devido as promessas a velha Estefánia, sem se esquecer de levar comida, em dias de festa à Mulemba.
Dona Estefánia faleceu meses depois tendo o seu acto repetido por várias gerações da sua época como ritual popular.

Francisco Luciano Fernandes

sábado, 2 de junho de 2007

Escrever é uma reinvenção do lugar onde gostaríamos de viver...

De 21 de Maio a 5 de Junho estamos a fazer um workshop de escrita criativa na biblioteca do Centro Cultural Português da cidade de Luanda. Está organizado em dois ateliês, um de ficção e outro mais vocacionado para a escrita de reportagem.
A orientação é, respectivamente, das editoras e jornalistas Marta Lança, que reside em Luanda e Susana Moreira Marques, que reside em Londres.
Esta proposta na área da formação surge da necessidade de enraizar métodos e soluções para expor a criatividade, desenvolvendo competências da escrita pela prática e confronto de ideias, tendo como temática de fundo "Luanda, cidade de todos os possíveis".
Este blogue é um lugar de encontro para textos e exercícios dos participantes no workshop. Um meio de divulgação e de estímulo à escrita.