terça-feira, 26 de junho de 2007

A caçadora de história

O silêncio pairava no cemitério, envolto em casas cobertas de chapa. Pássaros levantavam voo, assustados com os passos de Mirian, uma mulher sedenta de saber um pouco mais da histórica morte de Nito. Ouvindo pessoas, testemunhas, no cemitério, onde transitava ou noutro sítio. Ao longe, viam-se alguns indivíduos. Vinham de algum funeral, enquanto outros circulavam como Mirian, não para caçar, mas para diversão.
As campas jaziam inertes, sem som, sem calor, sem frio, viesse o que viesse, nem que fosse a chuva. Um odor tentava escapar-se. Era um incómodo. Um retrato de madre estava estampado numa lápide para a lembrança de entes queridos, padres, madres, familiares ou amigos.
Mirian caminhava entre as sepulturas, ávida. Queria chegar até onde ficava o túmulo de Nito, líder da intentona golpista, fracassada em 27 de Maio de 1977, para contar a quem quisesse saber e para o seu recheio intelectual.
Manuel Salvador, o coveiro, deu conta de Mirian, como sendo alguém que procurava algo entre as sepulturas. Achava estranho. Aproximou-se lentamente lançando algumas palavras:
-Estou a tomar conta destas campas. O que queria minha senhora?
-Onde é que fica o túmulo de um tal ... Nito? -inquiriu.
-Nito? -Nito Alves? Estas informações não podem ser dadas assim, só assim. Isto é política. Nós na política não nos metemos. É extremamente perigoso - dizia o coveiro, enquanto caminhava de braços atrás, fazendo Mirian segui-lo com os seus passos, para o canto direito do cemitério.
Algumas covas desenhavam-se, devido à terra acalcada pelas águas da chuva e pelo vento, que soprava e arrastava parte dos montes. Um grande túmulo revestido de mosaico, com pequenos pilares à volta, aí estava. Vários nomes escritos na parede faziam uma longa lista. Podia ver-se o de Nito Alves, no meio de outros, como Urbano de Castro e David Zé.
-Aqui enterraram quase mil corpos. Não dá para imaginar, os corpos descobertos, eram deitados ácidos para secarem, só que o cheiro foi demais e o povo revoltou-se, pediu para enterrá-los. O meu comandante também foi aqui, acusado de fraccionista - revelou Manuel Salvador.
-Enterraram aqui os dirigentes, não entrou povo qualquer neste buraco, estes foram enterrados naquele lado - mostrou o coveiro à Mirian, com a cabeça, ao invés do dedo indicador.
-Ninguém ousava comer carne, quem visse aquilo - lembrou o homem.
Mirian manteve-se calada, imaginando a matança de que ouvia falar.
-Costuma vir alguém prestar alguma homenagem? - perguntou Mirian.
-Não, não vejo ninguém. Só de vez em quando, mas aqueles ligados à Asociação 27 de Maio - replicou Manuel Salvador.
Mirian pensava na distância entre Luanda e Lisboa, para onde viajaria no dia seguinte. Queria estar mais apetrechada e satisfeita com elementos suficientes para contar aquela história, espectacular, vivida por muitos.
Ao sair do cemitério, Mirian ficara com a sensação de ter deixado um recinto com várias histórias por relatar. A questão era optar por uma interessante. A de Nito tinha este carácter.
Ficaram os pássaros, ficaram as campas e ficara velho Manuel Salvador contente por ter cumprido um dever delicado, raro e fácil só se for sob efeito do álcool, como se demonstrava ao rejeitar-se a falar daquele político.
Não queria perder nem mais um minuto, Mirian seguiu em direcção ao bairro, no subúrbio, onde se aventava ser o local de encontros secretos que resultaram naquela trajédia, no Sambizanga.
Um jovem prontificou-se:
-Olha, aqui neste edifício foi o sítio de reunões. Reuniam-se aí. Quem teve sorte escapou-se e hoje são chefes no governo.
-Blindados vieram aqui no bairro, pisaram as casas dos fraccionistas. Foi horrível.
-Como é que sabes isto? - ineterrogou Mirian, afagando os ombros do moço.
Tenho muitos recortes de jornais, ouvi palestras, escutei entrevistas de rádio, ouvi testemunhas - confirmou ele.
Tristeza já passara, havia sim uma alegria em ouvir o desenrolar de uma história como aquela, da intentona fracassada, ouvida só de pessoas idosas, que a vivenciaram.
-Tens algum dossier? Vais escrever esta história em livro? - inquiriu o jovem.
-Não, agora não, só mais tarde. Mas se isto acontecer, será em forma de ficção.
-É mentira dela! É mentira! Esta é contra-revolucionária. Vai vender estas dicas ao imperialismo. O imperialismo estrangeiro.
Mirian não conseguiu gerir o clima criado. Em poucos segundos estava cercada de gente que queria ver quem era a contra-revolucionária.
-Deixem! Deixem-na! Sois atrasadinhos, vocês nada sabem. Ela está a estudar esta história de Nito. Não tem mal nenhum. Quer saber o que se passou naquele tempo.
Lá ficou o moço com o barulho. Mirian arrancou o jeep, sem mais se despedir, nem reparar para atrás. Era o fim do dia e o princípio de uma noite, às vezes perigosa, com a existência de muitos bandidos que fazem mal. Mirian desapareceu do cenário, sem mais pensar em voltar.


Francisco Luciano Fernandes

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